Poemas : 

A César o que é de César

 
O Luso-Poemas ficou mais pobre.
O autor de maior qualidade que já tive oportunidade de ler nestas paragens decidiu não mais contribuir connosco.

Boxer é um exímio escritor, os seus poemas tem um português invejável, uma prosa poética cheia de referências e figuras de estilo que me fazem inveja.
Há muito que sou um comentador dos seus textos (tanta poesia de qualidade que tivemos de borla) e não fosse tão fraca a minha memória poderia passar as próximas tardes a dar exemplos do que me estou a referir.
Como comentador, é duma sagacidade impar, de um olhar clínico que sabe ver, como foi recentemente, uma maçã num mação.
Também a sua simpatia vai deixar saudades, assim como a hombridade, a decência.
Lembro-me sempre dum comentário ácido que me fez a um poema sobre sorrisos que me fez responder em PM e da humildade que demonstrou ao ler a minha resposta.

Porque é um Homem, também decidiu, em confinamento, lutar por esta causa que o deve incomodar como a mim.

A vergonha que a Leonor sente, eu também sinto, e espero que ele tenha a decência de voltar atrás com esta decisão, ou que volte, com outro nome, para termos o prazer de o ler.

Abraço caríssimo irmão de letras

PS1.: Este texto é também um comentário meu à segunda publicação do POR.UM.LUSO.MELHOR

PS2.: Para dar exemplo da sua qualidade enquanto pensador, uma vez que não é um poema, resolvi enviar em Nota de autor um escrito do Boxer a um dos meus, o "hálito da espera", passo a publicidade...


Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.

No livro do Génesis, o hálito divino é a origem do Homem: "Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente."
Mais tarde, entre os gregos, a alma era vista como uma porção de ar, que partira do éter e a ele regressaria na hora da morte. Há até relatos de quem conseguiu ver o ar expelido pela boca dos mortos no momento do óbito.
A associação do hálito à vida é, portanto, algo quase natural e comum a várias civilizações humanas.

Neste poema, essa ligação começa por residir em três metáforas: a nuvem, a pluma e o sorriso. As três combinam-se numa imagem comum: a de algo que pode nascer vívido e fulgurante para, mais tarde, se revelar frágil e transitório.
A nuvem, que pode tomar todas as formas dos sonhos e que depois desaparece com a brisa...
A pluma, que representa a beleza das aves e que se converte em algo tão fútil quanto a pena de um chapéu ou um marcador esquecido num livro...
O sorriso, símbolo ambivalente da alegria/tristeza/escárnio...

A meu ver, no verso seguinte -- "o ar do ar preso" -- começa a segunda parte do texto, em que a ideia de prisão vem introduzir a mais bela estrofe do poema: "tem o corpo do arvoredo / por podar / e o toque liso dum abraço / prenhe de mãos e dedos".
Como interpretar estas duas ideias que aparecem ligadas pela copulativa? Algo que cresce e que precisa de ser cortado e um abraço de "toque liso"?
A minha leitura leva-me à insurreição dos corpos que não se deixam cercear pelos constrangimentos da sua frágil condição e que procuram ligações, cheias de sonhos e anseios, mesmo que tenham de se cingir ao "toque liso", a uma verticalidade das relações, que se desejariam circulares como um abraço.

Reflexos de um mundo em confinamento? Não sei. Talvez seja demasiado literal.
Independentemente de qual tenha sido o móbil da escrita, há aqui algo que encontro em outros poemas do Rogério: a presença constante de elementos primordiais (ar, fogo, terra, água -- a que juntaria a luz) que são a chave de leitura para o lado mais desconhecido e encantatório dos sentimentos humanos.

Um grande abraço, meu irmão.
 
Autor
Rogério Beça
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 16/05/2020 09:27  Atualizado: 16/05/2020 09:27
 Re: A César o que é de César
Eu entendo e lamento profundamente a saída dos poetas Alberto e Boxer.
Envergonho -me profundamente do silêncio covarde dos demais colegas.
São meros escrevedores!
Poesia não pactua com covardes.

Enviado por Tópico
Gyl
Publicado: 16/05/2020 19:46  Atualizado: 16/05/2020 19:46
Usuário desde: 07/08/2009
Localidade: Brasil
Mensagens: 16070
 Re: A César o que é de César
Espero que o poeta e amigo Boxer releve e retorne a esta casa que fica muito mais pobre com a ausência do grande e adorável mestre. Lamentável.

Enviado por Tópico
eir
Publicado: 17/05/2020 13:01  Atualizado: 17/05/2020 13:01
Participativo
Usuário desde: 11/05/2020
Localidade:
Mensagens: 18
 Re: A César o que é de César
Obrigado Rogério por dar relevância a esse grande poeta.

O luso faz lembrar aquele muro do recreio da escola primária, onde grafitamos os nossos recados desde mais tenra idade … mas por alguma razão, podemos caiar de branco as nossas histórias …

Quem sabe um dia, o boxer, não volte a salpicar sua alma nestas paredes, agora mais pobres depois da sua ausência.

Enviado por Tópico
atizviegas68
Publicado: 18/05/2020 16:56  Atualizado: 18/05/2020 18:05
Usuário desde: 09/08/2014
Localidade: Açores
Mensagens: 1522
 Re: A César o que é de César -a resposta do decoro e da dignidade
A resposta do gigante*

Eu encontrei um gigante a caminho;
Ele parecia mais sábio que a natureza.
«Diga-me um pouco de verdade»: assim minha língua traiu (*)
minha alma a isso mais que uma criatura.
«Há apenas um», numa voz antiga e estranha.
Ele gritou: 'as coisas são mais, eu digo, do
que o tempo em que elas parecem mudar
E (**) o espaço que parece mais do que elas.

Alexander Search
1908?
(*) NdE: recomendação ", assim a minha língua traiu"
(**) NdE: recomendação ", e depois"


* No contexto da partida do companheiro de letras Boxer, atribuo à palavra "gigante" os seguintes sentidos: nobreza moral e ética, decoro e dignidade.

Senhor da escrita. Das palavras. Da literatura.
Às aves oferecem-se asas.
Aos homens com dignidade, oferece-se a liberdade.
Um abraço com estima, companheiro da escrita.


*****************************


I met a giant upon my way;
He looked more wise than Nature.
«Tell me some truth»: so my tongue betrayed(*)
My soul to that more than creature.
«There is but one», in an old voice strange
He cried: 'things are more, I say,
Than Time in which they seem to change
And(**) Space that seems more than they.

Alexander Search
1908?
(*) N.d.E: Enmendation, "thus my tongue did betray"
(**) N.d.E: Enmendation, "And than"