sandeman ou a parábola dos figos secos

Data 23/11/2021 12:18:05 | Tópico: Poemas

escondo no meu corpo
aquilo que se diz das nuvens
que depressa nascem
e depressa envelhecem

o segredo
é que desde criança sempre fui
das aves

como esta nesta janela
igual às outras
com gente como eu
igual às outras
nestas pensões em que
tudo dá para o drapeado noturno
das mesmas ruas

agarro as cortinas surradas
enquanto me mordes com as mãos

a minha tia linda
é que sabia tão bem como me dar
a mão

daqui diviso aves por
rostos
rostos por muros
casarios pardos
o ribeiro sujo de uma sarjeta
ao longe um sino

abri senhor os meus lábios

a minha tia linda dava-me a mão e
lanchávamos figos secos

existes para me cobrir
és parte da minha revolta
porque um dia pensei que a febre
também podia ser uma espécie
de certeza

nasci para ser degolada
todos sabem que a carne de sangue fresco
é a mais saborosa

o meu tio mastiga em seco
e atira a malha
a minha tia só me aperta
a mão

faz diferença ter uma casa de banho
onde me trancar
no espelho
faltam-me os braços
mas tenho um ventre peludo
por dentro
sou veludo e sou garrote
e há dias em que gostava
de ser apenas um ângulo

mas agora sou uma criança podre

que a tia linda leva pela mão
até ao rio do homem da capa e
lanchamos figos secos

o quarto cheira a fumeiro
frio e fome
a primeira vez foi atrás da igreja
os cães não param de ladrar
e ele bate com a porta

a malha cai bruta sobre o pino
a minha mão dói tia linda
e o homem da capa está a olhar para nós

encosto o rosto à janela
tento voar e cruzo o rio

as suas mãos
nas minhas

figos secos


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