Poemas : 

sandeman ou a parábola dos figos secos

 
escondo no meu corpo
aquilo que se diz das nuvens
que depressa nascem
e depressa envelhecem

o segredo
é que desde criança sempre fui
das aves

como esta nesta janela
igual às outras
com gente como eu
igual às outras
nestas pensões em que
tudo dá para o drapeado noturno
das mesmas ruas

agarro as cortinas surradas
enquanto me mordes com as mãos

a minha tia linda
é que sabia tão bem como me dar
a mão

daqui diviso aves por
rostos
rostos por muros
casarios pardos
o ribeiro sujo de uma sarjeta
ao longe um sino

abri senhor os meus lábios

a minha tia linda dava-me a mão e
lanchávamos figos secos

existes para me cobrir
és parte da minha revolta
porque um dia pensei que a febre
também podia ser uma espécie
de certeza

nasci para ser degolada
todos sabem que a carne de sangue fresco
é a mais saborosa

o meu tio mastiga em seco
e atira a malha
a minha tia só me aperta
a mão

faz diferença ter uma casa de banho
onde me trancar
no espelho
faltam-me os braços
mas tenho um ventre peludo
por dentro
sou veludo e sou garrote
e há dias em que gostava
de ser apenas um ângulo

mas agora sou uma criança podre

que a tia linda leva pela mão
até ao rio do homem da capa e
lanchamos figos secos

o quarto cheira a fumeiro
frio e fome
a primeira vez foi atrás da igreja
os cães não param de ladrar
e ele bate com a porta

a malha cai bruta sobre o pino
a minha mão dói tia linda
e o homem da capa está a olhar para nós

encosto o rosto à janela
tento voar e cruzo o rio

as suas mãos
nas minhas

figos secos

 
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benjamin
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Enviado por Tópico
Sergius Dizioli
Publicado: 23/11/2021 20:02  Atualizado: 23/11/2021 20:02
Administrador
Usuário desde: 14/08/2018
Localidade: काठमाडौं (Nepal)
Mensagens: 2221
 Re: sandeman ou a parábola dos figos secos
Que belo poema que nos prende a leitura. Numa mistura de sensações nos conduz a momentos de confusas conclusões. Seria o protagonista uma ave verdadeiramente ou conta a história de alguém, em forma de parábola, que como tantos marginalizados sofre mas se conforma sem ter perspectivas?
Ao final, resta um sensação de perda, de empatia pela dor do protagonista seja ele(a) quem for.
Sensacional a construção e a beleza dos versos.
Saudações.


Enviado por Tópico
benjamin
Publicado: 23/11/2021 20:17  Atualizado: 23/11/2021 20:17
Administrador
Usuário desde: 02/10/2021
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 Re: sandeman ou a parábola dos figos secos
Muito obrigado.
Estava a pensar que iria colocar a imagem do Don Sandeman :)

Enviado por Tópico
Abissal
Publicado: 23/11/2021 22:33  Atualizado: 23/11/2021 22:33
Membro de honra
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 Re: sandeman ou a parábola dos figos secos
um Porto. gostei da leitura,

Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 03/02/2022 18:56  Atualizado: 05/02/2022 13:19
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Mensagens: 1940
 Re: sandeman ou a parábola dos figos secos
Afirmo, sem medo, que este poema sabe a tabu, do primeiro ao último verso.

Sandeman é uma marca conhecida de vinho do porto.
A sua imagem, ou logótipo, que vem bem claro no rótulo dessa marca (passo a publicidade), é um misterioso homem de capa, todo ele anónimo e envolto numa sombra escura e robusta. Há quem diga que tem o nome de Don.
Sem grande dom, é denominação de nobreza, como o Sir em inglês.
Além de circular pelo mundo engarrafado, é um catrapázio gigante, em Vila Nova de Gaia. Tenho a memória de um tio meu chamar àquele monumento, Roque Santeiro, numa conversa jocosa que ele consegue ter, quando alegre. Também a personagem da novela era misteriosa.
Sobre capas e tios, mais à frente.

Os figos são flores invertidas.
Pessoalmente, acho-os deliciosos. Ir aos figos é uma boa maneira de ir parar ao hospital. Os ramos mais altos têm os maiores.
A folha da figueira foi a primeira peça de roupa, segundo o antigo testamento. Uma das primeiras consequências do pecado original.
Figos secos lembra-me o natal e a minha incapacidade de lidar com doces.
A desidratação destes frutos não tem muito que se lhe diga: é deixar ao sol.
Assim, conservam-se quase para sempre, e é proibido misturá-los com frutos secos, como a amêndoa, ou a noz. Ou, em alternativa, deito a balança no lixo.

Já que falamos do antigo testamento, ele é pródigo em parábolas. Textos de forte moral em que o uso de metáforas é abusivo. Interessante o uso da palavra no título. Terá este poema uma moral?
A metáfora, é uma das figuras de estilo em que tenho mais dificuldades, de interpretar e de criar. Há umas bastante óbvias, outras nem tanto. Criar novas metáforas, ou originais, é bem difícil e desafiante.
E pronto, já consegui sair do título...


O sujeito poético começa por fazer uma confidência, na primeira estrofe. E fá-lo sob a forma de adivinha.
Na primeira pessoa, diz que “escondo...” evitando mostrá-lo, e depois compara-se com as “...nuvens...”, elemento de água essencial à vida, mas inacessível, a não ser que se desfaça em chuva, por arrefecimento. Embora os dois últimos versos da mesma estrofe vinquem o “...depressa...” e a efemeridade. Um passageiro, no fundo.

A justificação para isso surge no verso seguinte, em que o secretismo se mantém, mas o elemento ar se repete, desta vez, não nas nuvens, mas nas “...aves...”.
E aqui as aves têm duas ações que, poeticamente, são magníficas, o voo (como as tais nuvens) mas, sobretudo, o canto.
Ser “...das aves...” “...desde criança...” é uma expressão orgulhosa de pertença, quase como se tratasse de um clã. Uma sina.

Mas, assim como parece se colocar num grupo especial e restrito nestas duas estrofes, logo na terceira desmonta totalmente essa ideia, com a repetição de “... igual às outras...” no segundo e quarto versos.
Especial, mas não tanto, e acaba a apresentação.

Na primeira pessoa continua o poema e surge um macabro ”...agarro as cortinas surradas\enquanto me mordes com as mãos...”.
Dois versos fazem a quarta estrofe, e a parábola começa.
A mordedura é uma agressão animal, da maioria dos predadores. Os caninos salientes, geralmente, procuram zonas vitais onde atacar. As mãos (e as garras), na melhor das hipóteses, arranham.
Ou agarram “...cortinas surradas...”. Uma bela metáfora, também, ao escondido por trás de algo, e com esse sujo a ter, imageticamente, o tom de entranhado.
Tabus.

A personagem principal deste poema é a tia Linda. Não sei se nome, se adjectivo.
Optei pelos dois. Pois é a representação do cúmplice, do veículo, do chulo e do manipulador. Da que compra o afecto e a submissão com algo tão menor, como figos secos.
Ela surge na quinta estrofe, e é nessa mesma que fica a última expressão de ingenuidade do sujeito poético.

Tudo o resto é resignação.
Como tia é um grau de parentesco, a estrofe que vem quer fazer divisões. O trigo do joio. As valorizadas “...aves...” têm rostos (superficialidade) e "...muros..." (barreiras). E tias.
O autor, aqui, faz a piedade de salvar, desta aparente alusão ao abuso sexual de menores, a figura da Mãe. Coloca um elemento ligeiramente mais distante nessa posição.

O elemento água, que é iniciado nas altas “...nuvens...” aparece, agora, como “...
o ribeiro sujo de uma sarjeta...” totalmente poluído (pela mão do Homem).
Quase tem cheiro este verso.
À oitava estrofe o título volta em força, o elemento dos figos aparece associado à tia e o dar a mão a corporalidade (sensualidade não me estava a soar bem).
“Dar a mão” tem muitos sentidos. Tem o direto, de fazer companhia. O associamos ao laço amoroso (mãos dadas). “Dar a mão em casamento”, como transmissão do dote e permissão desse ritual. Ou, simplesmente, o mais metafórico, o ajudar.
Podendo-me escapar algum, neste poema não consigo encaixar nenhum destes.
O “dar a mão” perfidamente fingido e manipulador, talvez.
Engraçada a escolha do "...lanche..." para a estrofe.
Pensando um pouco nisso, é uma das refeições que foge das três principais. Como se fosse um luxo, em tempo de escassez, como o ambiente anteriormente descrito parece querer indicar.

O sujeito poético, a partir da décima estrofe, assume a voz no feminino.
Também o terceiro protagonista surge, na figura do “...tio...”.
A capa do Don parece assentar bem (mal) no tio.
O binómio tia-tio forma uma equipa mórbida e explica a “...revolta...” do sujeito poético.
Um dos pontos mais marcantes deste escrito, aparece nestes três versos: “...nasci para ser degolada\todos sabem que a carne de sangue fresco\é a mais saborosa...”.
Há a resignação supracitada, mas além dela, uma estranha forma da vítima justificar os atos do agressor. Como as mulheres usarem roupas provocantes ser justificação para violações!...
Tantos tabus.

Com mestria, o autor continua a conseguir provocar o asco do (deste) leitor, nas estrofes seguintes.

A corrupção da inocência vai-nos guiando no “...ventre peludo...”, no “... mas agora sou uma criança podre...”, no “... na primeira vez foi atrás da igreja...” numa leitura que custa até à dor e até ao fim...

Um retrato demasiado real, escrito com as entrelinhas devidas que a poesia permite, que todos devemos conhecer.
Ou pelo menos não ignorar.
Assim se quebram Tabus.

Obviamente, favoritei.

Abraço irmão...




Enviado por Tópico
ZeSilveiraDoBrasil
Publicado: 05/02/2022 13:17  Atualizado: 05/02/2022 13:17
Administrador
Usuário desde: 22/11/2018
Localidade: RIO - Brasil
Mensagens: 1916
 Re: sandeman ou a parábola dos figos secos
O que causou em mim a leitura? Posso até estar esquivocado, mas,
...de pronto, ao meu olhar, a indignação potenciada pela covardia do aliciamento, da pedofilia covarde e consentida via mãos ferinas, adúlteras...
meus sentidos aguçaram e me levaram para dentro do poema após eu ler a dissecação do Rogério (que aliás; você e ele fazem isso com maestria - acompanho-o no fórum). No mais, é parabenizá-lo pelo desenvolvimento poético do tema.
Grande abraço caRIOca!


Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 04/05/2023 08:01  Atualizado: 04/05/2023 08:01
Usuário desde: 06/11/2007
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Mensagens: 1940
 Re: sandeman ou a parábola dos figos secos
[li isto recentemente e não pude resistir...]

PRATO DE FIGOS


Também a poesia é filha
da necessidade -
esta que me chega à boca um pouco já
fora do tempo,
deixou de ser a sumarenta alegria
do sol sobre a boca;
esta, perdida e fresca
e nacarada pele adolescente,
mais parece um desses figos
secos ao sol de muitos dias
que no inverno sempre se encontram
postos num prato
para comeres junto ao fogo.


Eugénio de Andrade
RENTE AO DIZER, edições Assírio & Alvim
pág.66

(ils sont foux les romains)