TÃO FRIO QUANTO A BRISA

Data 12/02/2022 23:36:09 | Tópico: Prosas Poéticas

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Farto dos dias nefastos isentos de poesia, o velho homem sentou-se na cadeira espreguiçadeira do quintal, ao ar livre, num atalho disfarçado de sossego, afim de enganar o corpo cansado do calor que ainda fazia até àquelas horas da noite, cochilou.
Ao lado dele sobre a mesinha auxiliar de jardim, seus vícios proibidos; uma garrafa de bebida forte consumida até a metade com o copo emborcado no gargalo. Metade de uma cigarrilha apagada no cinzeiro, a última, das três adquiridas diariamente e nessa quantidade para evitar o abuso do fumo.
Dos lícitos; o rosto do seu amor, sua amada, retratada na fotografia sépia, posta no velho porta-retratos de metal zinabrado, com o mesmo sorriso maroto e olhar seguidor congelado, direcionado para dentro da saudade. Aquela mesma saudade desenhada desde que o deixou.
Juntos; sua caneta dormitava próxima ao fiel caderno de anotações, sonolento, de folhas embeiçadas, capa desbotada, lombada e seixas carcomidas pelo tempo de manuseio diuturno.
A madrugada engoliu a noite, e a brisa folheava-o aleatoriamente, descortinando os segredos ali apostos, incitando os sonhos que rondavam o sono que lhe chegara muito profundamente.
Seguia a vida a mercê das forças da natureza, do momento, indivisível, toda a sua trajetória sendo desvendada e espalhada pelo chão desordenadamente naquele instante único e derradeiro.
Relíquias guardadas em cada página, tesouros que seus dedos cristalizaram em versos, poesias
como se pedras preciosas fossem, assim como; seus poemas de amor, que uma hora não precisará mais guardar.
Seu corpo jazerá tão frio quanto à brisa.
O poeta estará morto, mas quiçá deixará imaculada sua poesia.


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