Quase Uma Lição Estética

Data 22/05/2023 22:47:41 | Tópico: Crónicas

Quando menino as minhas preocupações eram mais importantes. Veja bem, sem grandes ambições, bastavam-me umas tantas caixas de sapato. Nelas incrustava uma série de personagens inusitados, repletos das mais peculiares características, disso a chamarem de prosopopeia — coisa a chegar ao meu conhecimento tempos depois. Havia pedras, pedaços de madeiras, tampas de garrafas, antitranspirantes vazios e o que mais surgisse do descarte dos outros em casa. Se não existia nenhum valor nelas mesmas enquanto objetos, na minha imaginação formavam um pequeno tecido de personalidades tão extraordinários e singulares (singular o quanto se é possível na infância) que doía-me toda vez da necessidade de descarte.

Depois de harmonizado ao íntimo, quando algo ou alguma coisa torna-se parte de nós, o romper sempre deixa marcas profundas. Mesmo se a vida existir apenas numa espécie de dimensão metafísica. Mas em minha mente estavam claros os traços de cada um deles, o seu andar, a sua postura e a ginga em campo. O espaço encontrava-se já delimitado com precisão milimétrica, aristotélica; cuja demarcação da imaginação, afirma, depende diretamente da memória. E eu vivia inteiro para o futebol.

Com o tempo dei a preocupar-me com outras questões - sérias quanto fossem -, porém sem deter em nada aquele intenso brilho de outrora. Questiono-me dia e noite sobre a escrita: o que é escrever? — Mais: o que é escrever bem? E não consigo chegar a uma conclusão clara, límpida, feito os gols, as narrações; os flashes imagéticos tão vívidos ante os meus olhos. Tenho ciência, hoje, as cenas carecem estar desanuviadas na visão interna, beirando o concreto, para depois serem transmitidas as palavras.

Crescido soube de alguém ter escrito "As coisas que não levam a nada têm grande importância" e não pude deixar de sentir-me contemplado no lirismo de certa forma. De repente, muito cedo eu sabia nuances da natureza humana, das quais o tempo - sempre o tempo - tratou de turvar. E agora cabe-me o trabalho de escavar superfícies até rememorá-las.



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