O sossego

Data 25/07/2023 14:34:44 | Tópico: Poemas

escreveu o Silveira em https://www.luso-poemas.net/modules/ne ... ticle.php?storyid=368262:

"Noutro dia, no 'balance' da cadeira de vime da varanda, logo após o crepúsculo, quando o lampião ainda emitia luz fraca e fria, uma magestosa mariposa insistia voar rodiando a cuba de vidro, poucos minutos após, exausta e desidratada, caiu morta no chão ripado, a seguir, fora devorada por uma lagartixa; parece-me que é contumaz esses répteis ficarem a espreita debaixo dos lampiões - não lamentei - vida que segue."

ZESILVEIRADOBRASIL

daqui vem:

O sossego

Balançava o sossego, sentado na cadeira de vime da varanda. O sol já se punha e o horizonte, vermelho, previa o calor da jornada que estava para vir. As mãos, mães de calos, e os seus dedos, filhos sólidos, enrolavam com suavidade o tabaco na mortalha amarelada. As lâmpadas, de fraca luz, quase sumida, atraía as traças, os mosquitos e outros bichos que faziam as delicias da gorda que se acoitava na teia. Aquela mariposa maior, aquela que não se cansava de abalroar o vidro do pequeno lampião de parede, não cabia na armadilha da patuda. Tanta insistência daria, de certeza, em ocaso.
Deu.
Exausta e de asas secas caiu redonda no chão de tábuas mal afagadas. As lagartixas não perdoam teimosias. Lá estava uma que, paciente, aguardava o desfecho. A espera compensa.
- É assim que o mundo roda, não é? - perguntou o sossego ao neto atento.
O pequeno não respondeu mas olhou para o avô com os olhos bem abertos para depois voltar a olhar para a lagartixa, já muito menos esguia.
O velho acendeu o cigarro, pegou na garrafa da aguardente, e suspirou descansado enquanto a entornava para o copo. O miúdo, aninhado na cadeira com o avô, adormeceu seguro, longe das agruras do mundo.
"Só por isto já vale a pena chegar vivo ao fim do dia", pensava sossegado na gasta cadeira de vime.

O dia seguinte apareceu perto das seis. As cegonhas faziam-se ouvir nos muitos ninhos à volta. Era altura dos ratos do campo e das rãs começarem a ter medo.
Lá longe o campo esperava. O miúdo dormia com cara de anjo e o avô ganhava energias cada vez que olhava para ele. Não havia bruteza antes sair de casa. Até as tábuas mal afagadas do chão da varanda evitavam responder ao peso das botas para que não houvesse desassossego. Não fosse a criança acordar.

No outro lado do mundo havia gente a matar gente, gente a morrer porque fugia de gente que queria matar gente e gente que matava gente por se balançar sossegadamente numa cadeira de vime com os bichos e os netos.

O velho regressou da jorna. Os cães em festa com o miúdo a tentar acompanhá-los saltaram-lhe para os braços firmes, naturais de quem tem mãos, mães de calos, e os seus dedos são filhos sólidos.
A janta foi farta e depois veio a cadeira de vime, a velha cadeira de vime. O sossego aquietou-se com todos os seus companheiros, o cigarro e a aguardente.

Ali ainda ninguém se matava. Só havia bichos voadores e gordas nas teias e lagartixas espertas.

Valdevinoxis



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