O anuário non sense de inutilidades

Data 26/08/2023 17:14:08 | Tópico: Poemas

Janeiro: não distribuo esmolas
Frequento rodas de luto pelos
Umbrais frios das madrugadas
Disputo com cães as calçadas
Nessas horas quietas e úmidas
No ar, um breve odor de uvas
Fermentadas como um poema
A embriagar algum desavisado
Fevereiro: prurem-no questões
Vergastam-lhe os olhos rubros
Alma desnuda nas intempéries
P’ra perseguir somente o nada
Por não calar, dizer algo inútil
Palavras malcheirosas ou nulas
Resíduos de todas as partidas
Março: Tremula essa chegada
Flâmulas fúteis ou até etéreas
Na hora que a dor devia doer
De tantos sonhos extraviados
E nem mesmo ainda sonhados
Nos espelhos de corpo inteiro
Ou das partes que persistiram
Abril: A que serviria o braço
Se não usado para dar abraço
Não acenos chulos e gastados
Audição seletiva aflui a frase
Surda entre gritos subversivos
De pernas que não caminham
Vãs estradas já não caminham
No desejo atrelado às costas
Refulgente na áspera sombra
Maio: Sentidos em entranhas
No meu desvelo por meu país
De tantas vozes multíssonas
Dos parcos rincões distantes
Sumo de frutos tão variados
Só o chumbo te solucionará
Por sua insistência metálica
Na razão das mãos calejadas
Junho: No caminho, a pedra
Perigo por ruas desbordadas
Cereal ausente e ventre oco
Mesmo faminto das palavras
De todos livros inalcançados
Ou tantos poemas inescritos
Sem riso, calado, sem horário
Tudo respondido em silêncio
Julho: Eu sou tão obstinado
Empunho tolices p’la estrada
Versos na poeira de décadas
Tão atuais quais eu ou você
E tão demodê quanto um cd
Ser poeta, esse ofício triste
Na calma planície do campo
Agosto: Tais gotas sombrias
Prisioneiro por noites e dias
Só a brisa resvala na parede
A poesia é o quanto abunda
Para se desigualar da morte
Silêncio ao fim d’um inverno
Que espera outra primavera
Vir nascida a gosto de Deus
Setembro: Debalde a cidade
Corrupia a fumaça cinzenta
A alimentar a fuligem do dia
De lonjuras incomensuráveis
Mui amplas e quase infinitas
Riso amputado e desgalhado
Nos faculta migalhas e jejum
Qual a chuva que nunca vêm
Outubro: Vamos desvivendo
No ar roubado que se exalou
Pelos vinhos anchos à deriva
O barro não criou diamantes
Séculos de rudes esperanças
Um dia que possa desmorrer
No credo de tudo e do nada
Novembro: não há elegância
Na falta da honesta angústia
P’la dorida tristeza cotidiana
Vencida mágica da paciência
Sem nem um pão para comer
O incansável canto do látego
Posto não entenda nem saiba
Cerrando bocas desdentadas
Dezembro: o tempo solidário
De corações vazios solitários
Nos chãos do retorno a casa
O perfume lilás tinge os dias
Dormidos na palavra ternura
A palavra surta além de tudo
Aceno ao dia punho crispado
Um bom dia a rever os filhos
São poemas que a vida pariu




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