Poemas : 

O anuário non sense de inutilidades

 
Janeiro: não distribuo esmolas
Frequento rodas de luto pelos
Umbrais frios das madrugadas
Disputo com cães as calçadas
Nessas horas quietas e úmidas
No ar, um breve odor de uvas
Fermentadas como um poema
A embriagar algum desavisado
Fevereiro: prurem-no questões
Vergastam-lhe os olhos rubros
Alma desnuda nas intempéries
P’ra perseguir somente o nada
Por não calar, dizer algo inútil
Palavras malcheirosas ou nulas
Resíduos de todas as partidas
Março: Tremula essa chegada
Flâmulas fúteis ou até etéreas
Na hora que a dor devia doer
De tantos sonhos extraviados
E nem mesmo ainda sonhados
Nos espelhos de corpo inteiro
Ou das partes que persistiram
Abril: A que serviria o braço
Se não usado para dar abraço
Não acenos chulos e gastados
Audição seletiva aflui a frase
Surda entre gritos subversivos
De pernas que não caminham
Vãs estradas já não caminham
No desejo atrelado às costas
Refulgente na áspera sombra
Maio: Sentidos em entranhas
No meu desvelo por meu país
De tantas vozes multíssonas
Dos parcos rincões distantes
Sumo de frutos tão variados
Só o chumbo te solucionará
Por sua insistência metálica
Na razão das mãos calejadas
Junho: No caminho, a pedra
Perigo por ruas desbordadas
Cereal ausente e ventre oco
Mesmo faminto das palavras
De todos livros inalcançados
Ou tantos poemas inescritos
Sem riso, calado, sem horário
Tudo respondido em silêncio
Julho: Eu sou tão obstinado
Empunho tolices p’la estrada
Versos na poeira de décadas
Tão atuais quais eu ou você
E tão demodê quanto um cd
Ser poeta, esse ofício triste
Na calma planície do campo
Agosto: Tais gotas sombrias
Prisioneiro por noites e dias
Só a brisa resvala na parede
A poesia é o quanto abunda
Para se desigualar da morte
Silêncio ao fim d’um inverno
Que espera outra primavera
Vir nascida a gosto de Deus
Setembro: Debalde a cidade
Corrupia a fumaça cinzenta
A alimentar a fuligem do dia
De lonjuras incomensuráveis
Mui amplas e quase infinitas
Riso amputado e desgalhado
Nos faculta migalhas e jejum
Qual a chuva que nunca vêm
Outubro: Vamos desvivendo
No ar roubado que se exalou
Pelos vinhos anchos à deriva
O barro não criou diamantes
Séculos de rudes esperanças
Um dia que possa desmorrer
No credo de tudo e do nada
Novembro: não há elegância
Na falta da honesta angústia
P’la dorida tristeza cotidiana
Vencida mágica da paciência
Sem nem um pão para comer
O incansável canto do látego
Posto não entenda nem saiba
Cerrando bocas desdentadas
Dezembro: o tempo solidário
De corações vazios solitários
Nos chãos do retorno a casa
O perfume lilás tinge os dias
Dormidos na palavra ternura
A palavra surta além de tudo
Aceno ao dia punho crispado
Um bom dia a rever os filhos
São poemas que a vida pariu



"Somos apenas duas almas perdidas/Nadando n'um aquário ano após ano/Correndo sobre o mesmo velho chão/E o que nós encontramos? Só os mesmos velhos medos" (Gilmour/Waters)


 
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Sergius Dizioli
 
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Enviado por Tópico
HorrorisCausa
Publicado: 29/08/2023 11:51  Atualizado: 29/08/2023 11:51
Administrador
Usuário desde: 15/02/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3597
 Re: O anuário non sense de inutilidades /Sergius
olá Sergius

numa viagem por um ano, em que cada mês parece.me um ponto de partida, uma estado de avaliação ou um diário de bordo, marcadamente por uma atmosfera melancólica e introspectiva. evoca imagens de solidão e tristeza, até uma sensação voluntária de isolamento, possivelmente porque é necessário para todo o processo criativo e contemplação do mundo interior que interage como o mundo interior que é preciso anotar para encontrar conforto nesses momentos poéticos , a escrita que traz toda tranquilidade precisa... ..mas há um mês que se diferencia, Dezembro. o mês da solidariedade, e os filhos a sua /nossa melhor criação e tudo o resto é deixado ao lado.

...e janeiro volta

muito muito útil este anuário , criativo e reflectivo

atenciosamente
HC


Enviado por Tópico
ZeSilveiraDoBrasil
Publicado: 29/08/2023 14:10  Atualizado: 29/08/2023 14:28
Administrador
Usuário desde: 22/11/2018
Localidade: RIO - Brasil
Mensagens: 1916
Online!
 Re: O anuário non sense de inutilidades
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...a partir de dois mil e oito quando fui diagnosticado com cãncer, (na briga até hoje), e, agora lendo o seu anuário comprovei, coincidentemente, parece que eu o adotará instintivamente mês após mês, ano após ano os ditames descritos, que, para mim, não há nada estranho ou incoerente apesar da inutilidade ou não para meu status quo. Outrossim, cada mês adveio revelações, doze textos como se estrofes fossem de um poema, para me pôr mais consciente da minha resiliência . Escrita engenhosa. Cumprimento o amigo!
Aquele abraço caRIOca!