As cidades e os deuses

Data 25/11/2023 11:39:18 | Tópico: Contos

Quando o visitante chega a Cíbia pela primeira vez, é surpreendido por um aroma nauseabundo que o envolve assim que ultrapassa o largo pórtico das muralhas, sobre o qual pende a inscrição em letras capitulares "CVI MVLTVM EST PIPERIS, ETIAM OLERIBVS IMMISCET".

Pelas ruas repletas de casas miseráveis, destacam-se, a intervalos regulares, enormes construções que identificamos como restaurantes. Se entrarmos, vemos que os clientes se amontoam num espaço exíguo, perante um furo circular na parede do fundo, de onde os funcionários lhes entregam panelas e tigelas cheias de comida com aspeto e odor repugnantes.

Se questionarmos os habitantes de Cíbia sobre o motivo deste estranho comportamento, apontam para um edifício majestoso no cimo do outeiro. Lá habitam setenta e dois monges que se dedicam a investigar as propriedades esculentas e medicinais de alimentos exóticos, que lhes são trazidos por emissários que chegam de todas as partes do mundo: pasta de olhos de atum japonês, pétalas de orquídea dourada de Kinabalu no Bornéu, gafanhotos raiados de sangue israelitas, nariz de alce em gelatina vindo diretamente do Alasca, creme italiano de piophila casei (larvas de queijo), embriões de pato das Filipinas, bálsamo de dracula simia (orquídea-macaco do Equador), entre outras iguarias.

Analisados os predicados que cada parcela do alimento contém, os monges dedicam-se a ensaios de preparação, em que os tubérculos, as folhas, os caules, as pétalas e as cascas, bem como a carne, os pelos, as unhas, os dentes e os ossos, são cozidos, assados, refogados, grelhados e fritos. Depois de apurada a forma de confeção que preserva mais perfeitamente a essência de cada alimento, os monges registam o resultado da sua inquirição em folhas de pergaminho distribuídas depois pelos restaurantes, que adicionam religiosamente os novos ingredientes às suas monumentais despensas e ao cardápio, sem alterações que possam estar ao serviço de fúteis motivos estéticos ou degustativos.

Anualmente, os habitantes de Cíbia juntam as poucas moedas que foram amealhando e entregam-nas aos servos do palácio do outeiro, para financiar as viagens dos emissários e a aquisição das vitualhas que as alquimias monacais destacaram, arrebatados pelo privilégio de renunciar a todos os frívolos prazeres da vida em troca de uma única honra digna dos deuses.

[texto inspirado em "As Cidades Invisíveis", de Italo Calvino]



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