
Quase
Data 20/07/2025 19:54:21 | Tópico: Poemas
| Quase parti numa dessas madrugadas sem lua, onde até o poste parece cochilar de cansaço. Quase deixei a chave girada por dentro, pra que ninguém mais me procurasse — nem mesmo a culpa, que sempre chega tarde com o bafo quente do arrependimento.
Quase deixei um bilhete — mas quem lê bilhetes hoje em dia? A modernidade deletou os adeuses escritos à mão, e os digitais são frios demais pra conter o último suspiro de alguém que se esvaziou sem barulho.
Quase chamei por ela — a mulher que virou tatuagem invisível e cicatriz que arde até na ausência. Mas meu orgulho é um tirano bêbado, e minha boca só sabe cuspir silêncio quando transborda demais.
Quase pedi perdão à minha mãe, pelos olhos vermelhos, pelos portões batidos, pelas noites que ela passou esperando um filho que nunca voltou inteiro. Ela sempre soube — mas fingia acreditar no “tô bem” que eu repetia como reza.
Quase acreditei em Deus. Mas Ele também quase me respondeu… e se escondeu atrás de um domingo qualquer, entre o gosto amargo do vinho barato e uma oração que não passava do teto.
Quase morri algumas vezes, mas sempre me faltou coragem pra morrer bonito. Fiquei ali, entre a lâmina e a pele, fazendo acordos covardes com o vazio. E o vazio, esse filho da puta elegante, nunca falha no combinado.
Quase escrevi um livro que prestasse, mas a vida me atropelava entre capítulos. Quem quer ler sobre um cara que se autossabota e ainda ama a ex como se ela fosse redenção e inferno ao mesmo tempo?
Todo santo dia é uma sequência de “quases”: quase sadio, quase são, quase salvo. Quase homem. Quase fé. Quase poeta.
E é nesse quase que eu existo: feito sombra que sonha com corpo, feito lágrima que ensaia virar mar, feito cicatriz que se recusa a fechar.
Ainda não morri. Mas às vezes, só às vezes, eu respiro como se quisesse. Quase nos deixar ....
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