Clair de Lune

Data 25/08/2025 10:02:42 | Tópico: Poemas

Aos sábados de manhã
toco o Clair de Lune
no piano de parede,
para me libertar, julgo eu que um pouco,
dos horrores da existência.

Provoca-me um certo alívio
bater com os dedos
cadenciadamente nas teclas.

A sensação do toque devolve-me
a um estado
em que nada mais havia
além do corpo.

A consciência era ainda
um fumo remoto,
e as grandes questões
um espaço em branco.

Recito Louise Labé:

Ô dure mort, ô sort trop rigoureux!
Ma belle flamme est toute éteinte en pleurs,
Et mon esprit en cendres consumé.


E lembro o singular Étienne Morel,
o cultíssimo francês
que a minha mãe convidava para jantar
nos serões quentes de agosto.

Cabrito assado no forno com arroz de miúdos,
e, para o grand final,
uma prateada travessa de figos,
acompanhada com versos obscuros
numa voz calma,
grave,
demorada.

A diáfana maresia
entrava pelas janelas,
interrompia pensamentos,
detinha o ar,

prolongava os longos,
longos, longos meses
de tempo estagnado.

A treliça do jardim,
cansada do calor,
as flores da ervilha morrentes,
e a mão da minha mãe
sustendo um sorriso.

Ensaio um poema obscuro
destinado ao esquecimento,
como os versos que o singular Étienne Morel
trazia para a mesa

nos serões de agosto;
um poeta esquecido,
um verso de ninguém.

E por dentro,
ruir.
Ruir como a treliça do jardim,
ruir como as ervilhas morrentes,
ruir como os verões intermináveis,
ruir como o tempo estagnado.

À noite,
quando o silêncio cai,
volto atrás,

aos olores do pinhal quente do Camarido,
à resina ardida,
ao rumorejar da maresia,
ao murmúrio dos pinheiros imóveis.

Volto ao colo do meu pai,
e de novo toco
o Clair de Lune

num sábado de manhã
no piano de parede,
para me libertar, julgo eu que um pouco,
dos horrores da existência.



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