Poemas : 

Clair de Lune

 
Aos sábados de manhã
toco o Clair de Lune
no piano de parede,
para me libertar, julgo eu que um pouco,
dos horrores da existência.

Provoca-me um certo alívio
bater com os dedos
cadenciadamente nas teclas.

A sensação do toque devolve-me
a um estado
em que nada mais havia
além do corpo.

A consciência era ainda
um fumo remoto,
e as grandes questões
um espaço em branco.

Recito Louise Labé:

Ô dure mort, ô sort trop rigoureux!
Ma belle flamme est toute éteinte en pleurs,
Et mon esprit en cendres consumé.


E lembro o singular Étienne Morel,
o cultíssimo francês
que a minha mãe convidava para jantar
nos serões quentes de agosto.

Cabrito assado no forno com arroz de miúdos,
e, para o grand final,
uma prateada travessa de figos,
acompanhada com versos obscuros
numa voz calma,
grave,
demorada.

A diáfana maresia
entrava pelas janelas,
interrompia pensamentos,
detinha o ar,

prolongava os longos,
longos, longos meses
de tempo estagnado.

A treliça do jardim,
cansada do calor,
as flores da ervilha morrentes,
e a mão da minha mãe
sustendo um sorriso.

Ensaio um poema obscuro
destinado ao esquecimento,
como os versos que o singular Étienne Morel
trazia para a mesa

nos serões de agosto;
um poeta esquecido,
um verso de ninguém.

E por dentro,
ruir.
Ruir como a treliça do jardim,
ruir como as ervilhas morrentes,
ruir como os verões intermináveis,
ruir como o tempo estagnado.

À noite,
quando o silêncio cai,
volto atrás,

aos olores do pinhal quente do Camarido,
à resina ardida,
ao rumorejar da maresia,
ao murmúrio dos pinheiros imóveis.

Volto ao colo do meu pai,
e de novo toco
o Clair de Lune

num sábado de manhã
no piano de parede,
para me libertar, julgo eu que um pouco,
dos horrores da existência.

 
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Levant
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Enviado por Tópico
Beatrix
Publicado: 25/08/2025 10:24  Atualizado: 25/08/2025 10:24
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Usuário desde: 23/05/2024
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Mensagens: 709
 Re: Clair de Lune / Levant
.

Olá, Levant.

Ler os teus poemas é uma verdadeira delícia, como ter à frente uma travessa prateada de figos, em pleno serão quente de agosto, no meio do pinhal, enquanto se ouve (ou sabendo, se toca) Debussy.

Parabéns pelo talento.


Ab
Beatrix

Enviado por Tópico
AlexandreCosta
Publicado: 25/08/2025 12:16  Atualizado: 25/08/2025 12:16
Colaborador
Usuário desde: 06/05/2024
Localidade: Braga
Mensagens: 1125
 Re: Clair de Lune
alio-me ao sentimento da Beatrix :)


O piano é como poesia...

teclas brancas e pretas
papel branco e tinta preta

ambos soam ao vento
e o do norte, é sempre forte
mais intenso

:) abraço e boa semana