
Rita
Data 27/08/2025 20:57:48 | Tópico: Poemas
| Encerro o café, assim como o resto da minha parca fé.
Odor a cerveja, café queimado, o álcool alonga-se na língua.
O húmido rasto de risos suspensos, sons lisos, gemidos distantes, rumores colados à pele, boca de fel, olhos rubros, inchados, cabelo revolto de vento e fumo: rouba-me a noite a religião.
Na alameda amarelenta, vultos movem-se em câmara lenta: gente que ri e que cala, gente que passa e não vi, gente acompanhada, gente só, gente desalmada, gente que se cruza, que se esquece, que se esvai.
Pela luz coada da janela aparece a bela: a Rita, a Rita, a Rita. E se repito Rita é porque a repetição se faz canção, obsessão, litania, celestial coro que se agiganta.
A Rita dos mamilos rijos, duros como castanhas. A Rita que dança em mim. A Rita metal que arranha. A Rita. A Rita. A Rita.
Enrolo redondas as letras da Rita, lentamente, com a língua, enquanto caminha convicta com o Hemingway debaixo do braço, paramentada de letras, compassada de ideias, ecoando os passos solenes da procissão.
Transporta, silente, o volume III de Le sens de la vie, do singular Étienne Morel, homme de sapience et science, máximo amicíssimo da mãe: uma acesa procissão no meio da noite escura.
Encerro o café com a fé que desferro, a chave que roda no oco do ferro. Não cedo à tentação, não cedo à saudade: da Rita, do gato, do Clair de Lune no piano de parede, do Parménides na mesinha, das noites quentes do Camarido, do remanso do mar indormido.
Apenas encerro o café e anoto num diário rasurado, onde persiste o olvido, mais uma noite em que me afasto da fé.
Arde, todavia, na boca ainda a chama viva da procissão da Rita.
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