Encerro o café,
assim como o resto da minha parca fé.
Odor a cerveja, café queimado,
o álcool alonga-se na língua.
O húmido rasto de risos suspensos,
sons lisos, gemidos distantes,
rumores colados à pele,
boca de fel, olhos rubros, inchados,
cabelo revolto de vento e fumo:
rouba-me a noite a religião.
Na alameda amarelenta, vultos movem-se
em câmara lenta: gente que ri e que cala,
gente que passa e não vi, gente acompanhada,
gente só, gente desalmada,
gente que se cruza, que se esquece, que se esvai.
Pela luz coada da janela aparece a bela:
a Rita, a Rita, a Rita.
E se repito Rita é porque a repetição se faz canção,
obsessão, litania,
celestial coro que se agiganta.
A Rita dos mamilos rijos,
duros como castanhas.
A Rita que dança em mim.
A Rita metal que arranha.
A Rita. A Rita. A Rita.
Enrolo redondas as letras da Rita,
lentamente, com a língua,
enquanto caminha convicta com o Hemingway
debaixo do braço,
paramentada de letras, compassada de ideias,
ecoando os passos solenes da procissão.
Transporta, silente, o volume III de Le sens de la vie,
do singular Étienne Morel,
homme de sapience et science, máximo amicíssimo da mãe:
uma acesa procissão no meio da noite escura.
Encerro o café com a fé que desferro,
a chave que roda no oco do ferro.
Não cedo à tentação, não cedo à saudade:
da Rita, do gato, do Clair de Lune no piano de parede,
do Parménides na mesinha,
das noites quentes do Camarido,
do remanso do mar indormido.
Apenas encerro o café e anoto
num diário rasurado, onde persiste o olvido,
mais uma noite em que me afasto da fé.
Arde, todavia, na boca ainda
a chama viva da procissão da Rita.