O corpo pequeno, o cavalo de fogo e o relógio suíço

Data 11/09/2025 17:31:28 | Tópico: Poemas

1. O corpo pequeno

O homem olha a menina
que dorme no sofá,
dobrada sobre si mesma,
num corpo pequeno.

O cancro avança
lentamente,
pérfido no sangue que circula.
Respira fundo, a menina,
devagar.

Doze anos.
O cancro tirou-lhe os pulmões
para soprar as velas do bolo.

Primeira sessão de quimioterapia:
terça-feira da próxima semana,
16 de setembro,
às dez e meia da manhã.
Um corpo tão pequeno, a menina.
Pavilhão 2.
O nome no altifalante.

O homem bebe café
numa lata de tomates enferrujada.

Líquido nas veias.
O cancro à espera.
Um corpo pequeno.
A infância parada.


2. O cavalo de fogo

Tens cancro?

Um cavalo de fogo passa a correr
pelo meio da rua;
uma força bruta,
uma pancada no peito.

As crianças correm atrás,
saltam-lhe para o dorso,
puxam a crina.
Sopram-lhe ao ouvido
canções de embalar.

O cavalo relincha,
enlouquecido.

Tens cancro?

Naquela casa morrem pessoas,
dia após dia.
Uma mulher arrasta móveis pesados,
cospe dentes
para dentro de uma lata
de tomates enferrujada.

O velho caminha devagar
no meio da rua,
longe da passadeira.
E grita:
tens cancro?

O cavalo
arde.


3. O relógio suíço

A pulsão de morte
é um relógio suíço.
Preciso,
implacável.

Por exemplo:
apenas os mais velhos
e os inválidos
atravessam a rua
longe da passadeira.

Muitos deles,
quase todos,
têm cancro.


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