1. O corpo pequeno
O homem olha a menina
que dorme no sofá,
dobrada sobre si mesma,
num corpo pequeno.
O cancro avança
lentamente,
pérfido no sangue que circula.
Respira fundo, a menina,
devagar.
Doze anos.
O cancro tirou-lhe os pulmões
para soprar as velas do bolo.
Primeira sessão de quimioterapia:
terça-feira da próxima semana,
16 de setembro,
às dez e meia da manhã.
Um corpo tão pequeno, a menina.
Pavilhão 2.
O nome no altifalante.
O homem bebe café
numa lata de tomates enferrujada.
Líquido nas veias.
O cancro à espera.
Um corpo pequeno.
A infância parada.
2. O cavalo de fogo
Tens cancro?
Um cavalo de fogo passa a correr
pelo meio da rua;
uma força bruta,
uma pancada no peito.
As crianças correm atrás,
saltam-lhe para o dorso,
puxam a crina.
Sopram-lhe ao ouvido
canções de embalar.
O cavalo relincha,
enlouquecido.
Tens cancro?
Naquela casa morrem pessoas,
dia após dia.
Uma mulher arrasta móveis pesados,
cospe dentes
para dentro de uma lata
de tomates enferrujada.
O velho caminha devagar
no meio da rua,
longe da passadeira.
E grita:
tens cancro?
O cavalo
arde.
3. O relógio suíço
A pulsão de morte
é um relógio suíço.
Preciso,
implacável.
Por exemplo:
apenas os mais velhos
e os inválidos
atravessam a rua
longe da passadeira.
Muitos deles,
quase todos,
têm cancro.