O último sonho, mazurca para a noiva de teuprimo e o transporte de ovelhas e outros comportamentos

Data 15/09/2025 20:10:47 | Tópico: Poemas

O último sonho

Um corpo pequeno
repousa, sem vida,
na pedra fria da mármore.

Sabe-se:
a morte é recente.

Em breve,
subirá aos céus,
atravessando o silêncio triste
dos anjos.

O seu último sonho:
um cavalo de fogo corre
na rua;
crianças
saltam-lhe para o dorso e
puxam a crina,
soprando
canções de embalar.


Mazurca para a noiva de teuprimo

A noiva de teuprimo
sentou-se à mesa com três mortos,
os que habitualmente acompanham
as cerimónias matrimoniais
e fúnebres
de Iselbene, canto esquecido da Europa,
algures entre Itália
e um outro país que não interessa nomear.

São eles:

Juliano Hispérico,
perdido em roupa carnavalesca,
espécie de obra tropical primorosa
que não interessa lembrar.

Medel,
centenário aborígene australiano,
morto num banal acidente
entre um camião e um rinoceronte,
apertado num fato
roubado a um imitador de Elvis Presley
desmemoriado.

E um homem,
vestido de Pierrot,
gordo e besunto;
no bolso do casaquinho engomado,
um minúsculo pente,
sinal de aprumo
que nunca se concretiza.

A noiva de teuprimo
chora um pranto que não cessa.

Os mortos não falam,
e a noiva de teuprimo não se levanta
para dançar a mazurca.

No final da noite, já se sabe,
os mortos amarrarão
a noiva de teuprimo
para que não se mate.

Isto que digo é tal e qual
o que se passa. Observa:
os mortos não se condenam;
na verdade, entreajudam-se
quando se trata de dançar a mazurca.

Já de madrugada,
enquanto velhos e inválidos atravessam as ruas
fora das passadeiras,
para que a morte os encontre,
os mortos percorrem as ruas
com a noiva de teuprimo amarrada,
para que não se mate.

Estendem uma lata de tomates enferrujada
para recolher moedas e oferendas,
e partilham com as mulheres núbeis
a alegria de dançar a mazurca.


O transporte de ovelhas e outros comportamentos

Naquela casa acontecem coisas estranhas.
Por exemplo:

um homem transporta, incessantemente,
ovelhas de uma divisão para outra;

uma mulher recolhe lágrimas incombustíveis
numa lata de tomates enferrujada;

um bebé brinca entre loiças partidas,
afiadas, da casa de banho;

um cavalheiro francês recita poesia,
num tom lento, arrastado,
enquanto mastiga figos roxos;

e uma velha demente,
grotescamente dobrada
sobre o piano de parede,
toca o Clair de Lune.



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