O último sonho
Um corpo pequeno
repousa, sem vida,
na pedra fria da mármore.
Sabe-se:
a morte é recente.
Em breve,
subirá aos céus,
atravessando o silêncio triste
dos anjos.
O seu último sonho:
um cavalo de fogo corre
na rua;
crianças
saltam-lhe para o dorso e
puxam a crina,
soprando
canções de embalar.
Mazurca para a noiva de teuprimo
A noiva de teuprimo
sentou-se à mesa com três mortos,
os que habitualmente acompanham
as cerimónias matrimoniais
e fúnebres
de Iselbene, canto esquecido da Europa,
algures entre Itália
e um outro país que não interessa nomear.
São eles:
Juliano Hispérico,
perdido em roupa carnavalesca,
espécie de obra tropical primorosa
que não interessa lembrar.
Medel,
centenário aborígene australiano,
morto num banal acidente
entre um camião e um rinoceronte,
apertado num fato
roubado a um imitador de Elvis Presley
desmemoriado.
E um homem,
vestido de Pierrot,
gordo e besunto;
no bolso do casaquinho engomado,
um minúsculo pente,
sinal de aprumo
que nunca se concretiza.
A noiva de teuprimo
chora um pranto que não cessa.
Os mortos não falam,
e a noiva de teuprimo não se levanta
para dançar a mazurca.
No final da noite, já se sabe,
os mortos amarrarão
a noiva de teuprimo
para que não se mate.
Isto que digo é tal e qual
o que se passa. Observa:
os mortos não se condenam;
na verdade, entreajudam-se
quando se trata de dançar a mazurca.
Já de madrugada,
enquanto velhos e inválidos atravessam as ruas
fora das passadeiras,
para que a morte os encontre,
os mortos percorrem as ruas
com a noiva de teuprimo amarrada,
para que não se mate.
Estendem uma lata de tomates enferrujada
para recolher moedas e oferendas,
e partilham com as mulheres núbeis
a alegria de dançar a mazurca.
O transporte de ovelhas e outros comportamentos
Naquela casa acontecem coisas estranhas.
Por exemplo:
um homem transporta, incessantemente,
ovelhas de uma divisão para outra;
uma mulher recolhe lágrimas incombustíveis
numa lata de tomates enferrujada;
um bebé brinca entre loiças partidas,
afiadas, da casa de banho;
um cavalheiro francês recita poesia,
num tom lento, arrastado,
enquanto mastiga figos roxos;
e uma velha demente,
grotescamente dobrada
sobre o piano de parede,
toca o Clair de Lune.