
Inventário íntimo
Data 22/09/2025 09:45:04 | Tópico: Poemas
| Dentro de mim, um bebé de três meses assusta-se com o movimento das mãos, as cores e os sons; prefere voltar-se para dentro, esconder-se da comoção que o mundo lhe provoca.
Dentro de mim, uma criança de dois anos sente-se ameaçada pelo lobo que vive em casa. Não sabe o que é proteger-se.
Dentro de mim, uma criança de quatro anos não dorme durante toda a noite. Tem muitas ideias, talvez sete, para combater o medo, e nenhuma lhe oferece refúgio do terror do escuro.
Dentro de mim, uma criança de cinco anos carrega um peso maior que o corpo. Não quer desiludir o pai e todos os dias treina afincadamente no piano de parede.
Dentro de mim, uma criança magra de seis anos senta-se à mesa; do outro lado, a mãe olha-a com uma expressão austera e preocupada. A criança sente no peito a tensão e a contradição no rosto da mãe; ainda assim recusa a comida.
Dentro de mim, uma criança de sete anos esconde-se de si mesma; lê todos os livros da biblioteca, come bolachas e bebe copinhos de leite.
Dentro de mim, uma criança de nove anos envergonha-se porque pensa ter crescido demais. No último sonho cresceu tanto que furou o telhado e inspirou nuvens azulinas.
Dentro de mim, uma criança responsável segue as regras. Não há espaço para se distrair das coisas sérias da vida. Cozinha para os pais, limpa a casa, cuida do irmão mais novo.
Dentro de mim, uma criança foge e cala-se; prefere o vento dos montes ao som das palavras das pessoas.
Dentro de mim, uma criança afoga-se na praia da Nazaré.
Dentro de mim, uma criança sem idade traz o destino marcado.
Inventariei trinta e quatro crianças dentro de mim. Não se falam. Não se conhecem. São todas a mesma.
Dentro de mim não há corredores abertos, salas amplas, jardins soalheiros. Dentro de mim erguem-se labirintos altíssimos e trancam-se crianças em celas sombrias que nenhum sol encontra. O ar estagnado cheira a sangue e pulmão.
Por vezes uma criança chora e ninguém a ouve: de tristeza, de solidão, ou apenas porque é criança.
Tantas crianças dentro de mim e nenhuma conhece outra. Muitas permanecerão agrilhoadas ao instante que as gerou e as condenou.
Algumas hão de falar comigo.
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