Dentro de mim, um bebé
de três meses assusta-se
com o movimento das mãos,
as cores e os sons;
prefere voltar-se para dentro,
esconder-se da comoção
que o mundo lhe provoca.
Dentro de mim, uma criança
de dois anos
sente-se ameaçada
pelo lobo que vive em casa.
Não sabe o que é proteger-se.
Dentro de mim, uma criança
de quatro anos
não dorme durante toda a noite.
Tem muitas ideias, talvez sete,
para combater o medo,
e nenhuma lhe oferece refúgio
do terror do escuro.
Dentro de mim, uma criança
de cinco anos
carrega um peso maior que o corpo.
Não quer desiludir o pai
e todos os dias treina
afincadamente
no piano de parede.
Dentro de mim, uma criança
magra de seis anos
senta-se à mesa;
do outro lado, a mãe
olha-a com uma expressão austera
e preocupada.
A criança sente no peito a tensão
e a contradição no rosto da mãe;
ainda assim recusa a comida.
Dentro de mim, uma criança
de sete anos esconde-se de si mesma;
lê todos os livros da biblioteca,
come bolachas
e bebe copinhos de leite.
Dentro de mim, uma criança
de nove anos
envergonha-se porque pensa
ter crescido demais.
No último sonho cresceu tanto
que furou o telhado
e inspirou nuvens azulinas.
Dentro de mim, uma criança
responsável segue as regras.
Não há espaço para se distrair
das coisas sérias da vida.
Cozinha para os pais,
limpa a casa,
cuida do irmão mais novo.
Dentro de mim, uma criança
foge e cala-se;
prefere o vento dos montes
ao som das palavras das pessoas.
Dentro de mim, uma criança
afoga-se na praia da Nazaré.
Dentro de mim, uma criança
sem idade traz o destino marcado.
Inventariei trinta e quatro crianças
dentro de mim.
Não se falam.
Não se conhecem.
São todas a mesma.
Dentro de mim não há corredores abertos,
salas amplas, jardins soalheiros.
Dentro de mim erguem-se labirintos altíssimos
e trancam-se crianças em celas sombrias
que nenhum sol encontra.
O ar estagnado
cheira a sangue
e pulmão.
Por vezes
uma criança chora
e ninguém a ouve:
de tristeza, de solidão,
ou apenas porque é criança.
Tantas crianças dentro de mim
e nenhuma conhece outra.
Muitas permanecerão agrilhoadas
ao instante que
as gerou e as condenou.
Algumas hão de falar comigo.