Leonard Cohen

Data 02/10/2025 15:05:05 | Tópico: Poemas

Sempre que os dias adormecem
e o nevoeiro devolve a memória de dias passados,
visito o roseiral do crematório
e falo com a Matilde.

O serviço foi encomendado por um estrangeiro.
Nunca lhe soube o nome ou a nacionalidade,
apenas a ordem seca:
a morte de uma mulher sem nada, sem ninguém,
apenas um gato preto — preto, sublinhou —
e acrescentou: muito sangue.

Não foi difícil entrar na casa:
portas destrancadas, janelas abertas.
No gira-discos, Dance Me to the End of Love.

O gato ficou a sangrar no tapete de olhos abertos,
as patas traseiras em estremeções desordenados,
a respiração pesada como a de um velho
sentado no corredor da hemodiálise.

Dance me to your beauty with a burning violin.

E a Matilde — gostei tanto dela no espanto,
na cálida lucidez do fim;
as cicatrizes secas nos braços.
Não suplicou.
Entregou-se sem resistência e sem fuga.
Nos pés, sapatos gastos, pobres, indignos.

Dance me through the panic till I’m gathered safely in.

Troquei-os por outros de verniz que encontrei no fundo do armário,
reservados para um casamento ou um batizado,
apenas para que partisse mais bonita.

Quando tudo terminou, arrumei o serrote e o martelo.
Nada em mim se moveu.
Comovi-me, todavia, com esse nada,
com a estranheza de não sentir sequer o funéreo.

Lift me like an olive branch and be my homeward dove.

E ao falar agora com a Matilde no roseiral do crematório,
sei que ela não recorda a dor,
nem o sangue, nem o baque surdo do martelo contra a cabeça,
mas apenas os sapatos de verniz com que a calcei cuidadosamente,
quando o corpo ainda estremecia no chão,
presa aos estertores da morte.

Sorri quando recorda:
dançámos a valsa lenta do Cohen sobre o tapete ensanguentado,
ela já morta,
até que o gira-discos parasse.

E agradece.
Nunca a tinham levado a dançar.

Dance me to the end of love.
Dance me to the end of love.



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