Poemas : 

Leonard Cohen

 
Sempre que os dias adormecem
e o nevoeiro devolve a memória de dias passados,
visito o roseiral do crematório
e falo com a Matilde.

O serviço foi encomendado por um estrangeiro.
Nunca lhe soube o nome ou a nacionalidade,
apenas a ordem seca:
a morte de uma mulher sem nada, sem ninguém,
apenas um gato preto — preto, sublinhou —
e acrescentou: muito sangue.

Não foi difícil entrar na casa:
portas destrancadas, janelas abertas.
No gira-discos, Dance Me to the End of Love.

O gato ficou a sangrar no tapete de olhos abertos,
as patas traseiras em estremeções desordenados,
a respiração pesada como a de um velho
sentado no corredor da hemodiálise.

Dance me to your beauty with a burning violin.

E a Matilde — gostei tanto dela no espanto,
na cálida lucidez do fim;
as cicatrizes secas nos braços.
Não suplicou.
Entregou-se sem resistência e sem fuga.
Nos pés, sapatos gastos, pobres, indignos.

Dance me through the panic till I’m gathered safely in.

Troquei-os por outros de verniz que encontrei no fundo do armário,
reservados para um casamento ou um batizado,
apenas para que partisse mais bonita.

Quando tudo terminou, arrumei o serrote e o martelo.
Nada em mim se moveu.
Comovi-me, todavia, com esse nada,
com a estranheza de não sentir sequer o funéreo.

Lift me like an olive branch and be my homeward dove.

E ao falar agora com a Matilde no roseiral do crematório,
sei que ela não recorda a dor,
nem o sangue, nem o baque surdo do martelo contra a cabeça,
mas apenas os sapatos de verniz com que a calcei cuidadosamente,
quando o corpo ainda estremecia no chão,
presa aos estertores da morte.

Sorri quando recorda:
dançámos a valsa lenta do Cohen sobre o tapete ensanguentado,
ela já morta,
até que o gira-discos parasse.

E agradece.
Nunca a tinham levado a dançar.

Dance me to the end of love.
Dance me to the end of love.

 
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Levant
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Enviado por Tópico
Beatrix
Publicado: 03/10/2025 08:09  Atualizado: 03/10/2025 08:09
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 Re: Leonard Cohen / Levant
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Dance me to the wedding now, dance me on and on
Dance me very tenderly and dance me very long


Olá, Levant.

Mais uma excelente cena de cinema, com o argumentista na fila para o OSCAR.
Muito bem cosido!
Um pouco Hannibal Lecter, o sujeito poético (sp) delicia-se com a lembrança da matança, por ele perpetrada, de Matilde e seu gato, ao som de uma valsa especial. Para o sp, Matilde teve sorte por ter sido escolhida por ele para morrer. Visita-lhe o memorial para relembrar aqueles momentos de êxtase que, de certeza, Matilde, assassinada de forma bárbara, também sentiu.
E com a voz de Leonard Cohen, as cenas ganham outra personagem: a voz que se ouve no gira-discos.
Grave, suave e delicada, romantizada, a voz de Cohen parece sempre estar a cantar só para nós.
[Como gosto de Leonard Cohen, como músico, letrista, compositor e cantor. Fiquei tristíssima quando ele morreu (o último álbum é de oiro)].
As letras belíssimas convidam ao sonho e à escrita de um argumento, precisamente. Para quem consegue.

Dexter.



Ab
Beatrix