 
  
    	a decisão é sua
    	Data 04/08/2008 14:25:45 | Tópico: Contos
 
  |  Partilha a cela com os mais duros dos homens. Usou a mesmas calças durante vinte e muitos dias. Cuspiu no prato para que ninguém lhe mexesse no arroz. Praticou peitos e bicips numa barra espetada na parede da cela. 
  Deixou os almanaques do patinhas para se lançar à leitura de policiais. Os seus sonhos ficaram a setecentos quilómetros de distância.  Parasita só mesmo a saudade. 
  Tudo porque o juiz lhe informou que nos próximos dezoito anos veria o mundo como vêem os animais do Zoo: através de uma pouca abertura para entrar o sol: na prisão. 
  Dizem que matou, que estripou, que disparou um sei lá número de balas. Toda a sentença foi repetida pela voz do povo em tom de víboras. E as provas? As marcas que o até mais exímio assassino deixa, nem que seja por vaidade?
  O povo comenta o que vê pela televisão e é sabido que as suas línguas se tornam bífidas: com duas opiniões. Sim e não. Com o sim à condenação em tom mais avolumado.
  Não havia como enganar, ele tinha passado no mato áquela hora, naquele momento, as suas pégadas ainda lá estavam bem salientes mais frescas do que a passagem de um urso. Os ganos partidos e neles uns poucos de cabelos. Quer melhor prova do que isto? Vamos condenar já o gajo antes de o ouvir dizer pela voz dele que é inocente?  Mas ele não fala o que é que queres?! Está para ali feito farrapo que nem para fazer tapete de entrada da cozinha serve. 
  Era uma vez um homem que tinha duas meninas. Uma delas, a mais novinha, que há poucos dias tinha aprendido a fazer a perninha do A, a letra O tão redondinha como um ovo, já sabia escrever pai e mãe sem ser nos cadernos de duas linhas; veio à rua chamar pelo seu gato Licas, que é tão traquino quanto ela. 
  Os olhos da pequena daria o maior dos poemas de homenagem, o seu sorriso era de “inventar coisas novas”. Saiu à rua e não mais voltou. Passou-se uma hora, outra hora, mais duas horas e, a noite já era. O seu pai foi em contra-dança procurar a sua pequena, com o medo à superficie da pele. Procurou em todos os lugares prováveis e improváveis e não a viu.
  Até que se lembrou do fulano tal que dava brinquedos à rapariga, que lhe metia rebuçados no bolso e, não, não pode ser!, a minha menina é de oiro, ninguém é capaz de lhe dizer anda comigo ali que eu tenho uma coisa boa para ti.
  Enfureceu-se de tal ordem que os seus dentes feriam o lábio inferior, os seus olhos tomaram a cor de Hiroshima. O seu coração, não era coração, mas sim uma moto-serra. Foi ao mato. Viu o que viu: a perna da rapariga à mostra, os seus pequenos peitos a serem tocados, o monstro a salivar, com as calças em baixo, todos os horrores dentro do mesmo plano.
  STOP 
  Agora é a sua vez de contar, de agir perante esta situação. Vou dar-lhe apenas uma arma carregada.  Faça de conta que você é o pai da criança, dentro deste cenário: como uma arma carregada na mão, o monstro à sua frente, os seios da menina, que não são seios, sendo tocados, o grito de socorro da menina mais forte que a vida, a noite sempre noite, o futuro como lâminas transparentes, o coração: uma cadeira de baloiço alucinante, pai, pai, paaai!!!
  A menina chora, todo o mundo chora, o fado chora mas não é assim. Agora que tem a arma carregada não mão, um segundo por dezoito anos, a sentença no indicador, agarrado ao gatilho, os anjos neste momento não são para aqui chamados, isto não tem nada a ver com Deus ou com o Diabo, vem-te à memória aquela história do não matarás, fios e agulhas no pensamento, pronto eu saio aqui (mas não por cobardia!), a decisão é sua.
 
 
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