Contos : 

a decisão é sua

 
Partilha a cela com os mais duros dos homens. Usou a mesmas calças durante vinte e muitos dias. Cuspiu no prato para que ninguém lhe mexesse no arroz. Praticou peitos e bicips numa barra espetada na parede da cela.

Deixou os almanaques do patinhas para se lançar à leitura de policiais. Os seus sonhos ficaram a setecentos quilómetros de distância.
Parasita só mesmo a saudade.

Tudo porque o juiz lhe informou que nos próximos dezoito anos veria o mundo como vêem os animais do Zoo: através de uma pouca abertura para entrar o sol: na prisão.

Dizem que matou, que estripou, que disparou um sei lá número de balas. Toda a sentença foi repetida pela voz do povo em tom de víboras. E as provas? As marcas que o até mais exímio assassino deixa, nem que seja por vaidade?

O povo comenta o que vê pela televisão e é sabido que as suas línguas se tornam bífidas: com duas opiniões. Sim e não. Com o sim à condenação em tom mais avolumado.

Não havia como enganar, ele tinha passado no mato áquela hora, naquele momento, as suas pégadas ainda lá estavam bem salientes mais frescas do que a passagem de um urso. Os ganos partidos e neles uns poucos de cabelos. Quer melhor prova do que isto? Vamos condenar já o gajo antes de o ouvir dizer pela voz dele que é inocente?
Mas ele não fala o que é que queres?! Está para ali feito farrapo que nem para fazer tapete de entrada da cozinha serve.

Era uma vez um homem que tinha duas meninas. Uma delas, a mais novinha, que há poucos dias tinha aprendido a fazer a perninha do A, a letra O tão redondinha como um ovo, já sabia escrever pai e mãe sem ser nos cadernos de duas linhas; veio à rua chamar pelo seu gato Licas, que é tão traquino quanto ela.

Os olhos da pequena daria o maior dos poemas de homenagem, o seu sorriso era de “inventar coisas novas”. Saiu à rua e não mais voltou. Passou-se uma hora, outra hora, mais duas horas e, a noite já era.
O seu pai foi em contra-dança procurar a sua pequena, com o medo à superficie da pele. Procurou em todos os lugares prováveis e improváveis e não a viu.

Até que se lembrou do fulano tal que dava brinquedos à rapariga, que lhe metia rebuçados no bolso e, não, não pode ser!, a minha menina é de oiro, ninguém é capaz de lhe dizer anda comigo ali que eu tenho uma coisa boa para ti.

Enfureceu-se de tal ordem que os seus dentes feriam o lábio inferior, os seus olhos tomaram a cor de Hiroshima. O seu coração, não era coração, mas sim uma moto-serra.
Foi ao mato. Viu o que viu: a perna da rapariga à mostra, os seus pequenos peitos a serem tocados, o monstro a salivar, com as calças em baixo, todos os horrores dentro do mesmo plano.

STOP

Agora é a sua vez de contar, de agir perante esta situação.
Vou dar-lhe apenas uma arma carregada.
Faça de conta que você é o pai da criança, dentro deste cenário: como uma arma carregada na mão, o monstro à sua frente, os seios da menina, que não são seios, sendo tocados, o grito de socorro da menina mais forte que a vida, a noite sempre noite, o futuro como lâminas transparentes, o coração: uma cadeira de baloiço alucinante, pai, pai, paaai!!!

A menina chora, todo o mundo chora, o fado chora mas não é assim.
Agora que tem a arma carregada não mão, um segundo por dezoito anos, a sentença no indicador, agarrado ao gatilho, os anjos neste momento não são para aqui chamados, isto não tem nada a ver com Deus ou com o Diabo, vem-te à memória aquela história do não matarás, fios e agulhas no pensamento, pronto eu saio aqui (mas não por cobardia!), a decisão é sua.

 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 04/08/2008 14:40  Atualizado: 04/08/2008 14:42
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: a decisão é sua
eu dava dois tiros nas fuças do gajo... rsrsrs
só tu para me incitares à violência, trengo.

claro que gostei muito do conto, ó desaparecido!

Enviado por Tópico
Pedra Filosofal
Publicado: 04/08/2008 15:21  Atualizado: 04/08/2008 15:21
Colaborador
Usuário desde: 17/09/2007
Localidade: Barreiro
Mensagens: 1273
 Re: a decisão é sua
não, não mataria. Atava-o a uma arvore. Besuntava-o com mel. E deixava-o ali, nú. À espera. As formigas e as moscas haveriam de tratar dele. Haveria de ser ele a pedir que o levasse dali. Mas eu não o levaria. Besuntaria com mais mel. Uma morte lenta, tal como a morte lenta a que os pedófilos condenam as suas vítimas quando não as matam.

Dito isto... gostei muito da forma como colocaste a decisão no leitor, na sequencia dos acontecimentos.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 04/08/2008 17:00  Atualizado: 04/08/2008 17:00
 Re: a decisão é sua
Gostei imenso do texto, Flávio!
Eu não mataria o desgraçado!Dava-lhe uns tiros nos "países baixos" e o mandava ser "mulherzinha" dos presos num cadeia imunda por 18 anos.A morte o libertaria.
Bjins, Betha.

Enviado por Tópico
Alberto da fonseca
Publicado: 04/08/2008 17:19  Atualizado: 04/08/2008 17:19
Membro de honra
Usuário desde: 01/12/2007
Localidade: Natural de Sacavém,residente em Les Vans sul da Ardéche França
Mensagens: 7073
 Re: a decisão é sua
A minha menina deitada no chão e um monstro que se preparava para cometer um dos crimes mais hediondos que a humanidade conhece.
Conhece, mas não se condena com penas exemplares esses criminosos.
Se a justiça não os condena exemplarmente, que faço eu?
Tenho o dedo no gatilho e não sei como agir.
As minhas estão trémulas e eu vejo a minha menina no chão e sem defesa.
Não hesito, rimo o gatilho e eu fiz a justiça que a justiça não teria feito.
Sei que passei a ser um criminoso, mas fiquei feliz.
Feliz, porque a minha menina livrou-se das garras desse monstro que não terá mais oportunidades de voltar a cometer um ou mais crimes desse género.
Levantei a minha flha, peguei nela ao colo, levei-a para casa.
A mãe beijou-a até nem mais acabar, deu-lhe um merecido banhinho, deitou-a na sua caminha contando-lhe uma linda história para a judar a esquecer esse mau momento. Um momento que ela dificilmente iria esquecer por muitos anos.
E eu, estava triste, porque sabia que ela não teria a minha companhia, por quanto tempo? não sei!
Peguei na minha arma e apresntei-me na esquadra de policia que estava mais próxima.
Agora deixo a justiça, se é que ela existe, de fazer justiça com dignidade.
A. da fonseca


Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 04/08/2008 17:40  Atualizado: 04/08/2008 17:40
Usuário desde: 06/11/2007
Localidade:
Mensagens: 1943
 Re: a decisão é sua
Posso escolher a arma?

Eu tenho uma filha de dez meses sabes, e o tal não viveria mais um segundo.
Como bom cidadão iria pagar pelo que faria...

Dezoito anos é pouco...

Mais uma vez: este texto é a razão do meu vício!

Abraço.

Enviado por Tópico
HorrorisCausa
Publicado: 04/08/2008 17:46  Atualizado: 04/08/2008 17:46
Administrador
Usuário desde: 15/02/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3601
 Re: a decisão é sua
Texto transversal, toca pontos fundamentais: crime horrendus vs justiça popular, passando pela suposta legitimidade da justiça feita pelas vítimas.Todos estes pontos poderão ser legitimos,tendo em conta que comportamento gera comportamento, por isso, saio daqui (não por cobardia, mas por comodismo, porque, neste momento só consigo pensar: "ainda bem que não tenho que decidir", mesmo que fosse para desfecho de uma série televisiva.