secreção

Data 19/09/2008 20:35:05 | Tópico: Textos

encosto a cabeça ao parapeito e olho-te a descer as escadas, estás farta de andar e os teus pés há muito que apenas se arrastam, perdeste o jeito, aquele jeitinho de manear as ancas e a tua saia que antes te assentava na perfeição agora quase te cai pelas pernas abaixo.vais pela rua a enrolar um charro enquanto acabas de fumar outro, e eu fumo as minhas lágrimas, tenho pena de mim por não conseguir pegar-te ao colo, levar-te para casa e chamar-te filha, puta. engasgo-me na pastilha elástica que já não sabe a mentol, cheiro o café frio na chávena e vejo-lhe as marcas do batom lilás que combinava com as tuas meias de rede. recordo-te pequena, chegavas-me pela cintura e eu segurava-te pelos ombros e cortava o ar com o teu corpo, vejo-te a tocar órgão perante uma plateia encantada, o vestido branco da tua primeira comunhão. agora tocas outros órgãos que não dão música. sempre me foi difícil atravessar a rua, pagar-te sem esperar nada em troca, não ver-te roçar as pernas num outro corpo qualquer. ficar no carro a contar os minutos que passavas no banco detrás de um carro, dar cabeçadas no pára-brisas ao ver-te ajeitar a saia. a vida tinha de ser mais do que isto. sentaste na berma da estrada, o sítio já é teu, tens as pernas abertas e daqui vêem-se as cuecas vermelhas. eu pago a conta e envergonho-me quando vejo um casal, a mulher coloca os sacos das compras na bagageira e o pai de mão dada com a filha abre a porta do carro, senta-a no banco, dá-lhe um beijo na testa. olho-te e enquanto entras num citroen preto morrem-se-me os pés colados ao chão, podia correr puta, correr filha, correr com a vida, prefiro ficar. ficar com uma filha da puta.


Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=53436