o meu coração é um iglô

Data 15/10/2008 18:58:51 | Tópico: Textos

cresci depressa e cedo me habituei às tuas partidas, no meio da noite lá saías pela porta dos fundos com o saco na mão, os olhos baços e alguma tristeza, ainda que superficialmente irreconhecível. às vezes o teu regresso demorava mais de duas semanas mas tu, por fim, lá voltavas entre gritos e palavras ditas tão depressa que eu não entendia. e o frio instalava-se na casa, habituada já ao inverno. ficavas alguns dias, sempre menos do que eu esperava e depois lá ias, de novo o saco seguro pela palma da mão de onde nunca vi sair outro gesto que não fosse um estalo. devo confessar-te que a tua ausência era menos bravia, doía menos, os dias seguiam-se uns atrás dos outros, imaturos, fiéis à pouca idade que tinha até tu voltares e parares o tempo no relógio contra a parede. alguma coisa estava a morrer e eu sentia. aos poucos calejei-me de dores, deixei que as traças me ocupassem o lugar do peito e comessem tudo o que ainda restava. a vida é um beco. desejei muitas vezes que fosses embora, saísses pela porta dos fundos com os móveis às costas e desaparecesses noite adentro sem deixar rasto, sonhei até algumas noites que era isso que acontecia e fui feliz confundindo a realidade com o sonho. ao contrário do que julgas perdoei-te todas as partidas, todas, inclusive aquela que chegou depois de me teres atirado pelas escadas abaixo, o que não posso perdoar-te e o que sempre me doeu foram os teus regressos, quando voltavas com a geada nas mãos e a neve nos olhos pronto a congelar a casa e os corpos que a habitavam, pronto a gelar as minhas lágrimas e a fazer de mim icebergue. hoje caem-me estalactites dos olhos e o meu corpo é como a primavera em moscovo. é isto que eu não posso perdoar-te pai, nem nunca penso conseguir fazê-lo.


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