A ultima ceia do marinheiro de Veneza

Data 29/05/2009 11:47:21 | Tópico: Poemas


Trago-te aos pés o cansaço, também com os olhos se observa a viagem que a morte faz. Tu escutas o movimento da máquina de costura, na tua cabeça, na tua memória de infância parece o cavalo de ferro. O teu pai está deitado, parece que tem os olhos vazios colados ao tecto, tu imaginas que as sombras no quarto são uma banda desenhada. Sais do quarto e fumas um cigarro, aquele fumo é a alma dele, não tens boas recordações, tu parecias um peixe fresco cheio de sangue a flutuar nas paredes do quarto. Agora não estás por aqui, encontras-te uma árvore que num dia de nevoeiro e sob o efeito de calmantes te recebeu de braços abertos, ias ao volante de um carro comprado em segunda mão. Não sei o que viste naquele momento! Nas nuvens cinzentas por de trás das montanhas ficava o colégio católico. A vida apagava-se como se tinha apagado o ar severo do teu pai. Naquele lugar soprou um vento de tal modo forte, que a revista de banda desenhada que estava no banco traseiro voo para a rua. A tua alma levava os olhos do marinheiro de Veneza, tu gostavas que fosse ele o teu pai, que tivesse havido tempo para o recomeço. Nunca te contaram uma história, nunca te deram um beijo verdadeiramente molhado e verdadeiramente profundo. Foi muito demorado o tempo que os bombeiros levaram a chegar ao local, o sol era muito forte, com muito cuidado pegaram no teu corpo, não era o momento mas o marinheiro apareceu-te. Tinhas receio de lhe dares as mãos porque estavam frias. O som do mar e o aroma da comida árabe chegou-te ás narinas. Estavas morta, não sentias nada, ou sentias que era a primeira vez que voavas na vida. O teu marinheiro tinha a barba de uma semana, com as tuas mãos de morta não é possível sentires a sua pele escarpada como a rocha. Tu não te queres encontrar com o teu pai, a tua alma podia ficar sentada nas dunas e tu de olhos muito fechados andas-te em volta do mercado, entras-te invisível no café do alfarrabista, não era o vento, era o vento a desfolhar o livro dos piratas, ainda havia o cheiro da agua ardente no ar das Caraíbas. A atmosfera da cidade era de um cinzento pálido como se a cidade fosse uma actriz a maquiar-se e a esconder-se atrás de uma cortina de intrigas. Olhas-te as nuvens, como seria o céu se fosse um livro de banda desenhada, seria possível falar com Deus sobre banda desenhada?! Tu olhas-te o fumo que saia da fábrica, parecia o bule onde a coruja bebe o seu chá, o marinheiro de Veneza contou que é preciso cuidado com os chás, tem de ser bem fervidos para que nenhum pedaço de aventura caia no precipício da angustia, o louco Rapustine com o gume da sua faca está á espreita para desferir o golpe no momento em que te sentires segura, ele está escondido com o pé na linha da primavera a recitar o alcorão. O teu pai tem muitas formas, tu o associaste ao louco Rapustine, achas que o teu pai inventou a máquina de matar a infância. Queres descer á terra, ouvir o grito único e implacável da vida no ventre a dizer que te ama, do teu filho a chorar quando lhe batias como se bate na vida que não tivemos. E tu ouves a balada do mar salgado, que coisa estranha estar-se perdido no meio das nuvens, tu te sentarás na mesa da última ceia ao lado de Maria Madalena, o teu marinheiro de Veneza partilhando o pão e o vinho. Quem é que sabe do encontro de Cristo com corto maltese?! Aparentemente não há frio nem calor, o teu marinheiro desceu das nuvens como o profeta que vê para além das montanhas. Os desejos da alma misturam-se com os desejos do corpo. Tens saudades do teu vinho. O professor inexistência fuma o seu cachimbo de ópio e tu de repente te apercebes que não tens roupa. O teu marinheiro sorri, tu não tens um espelho á mão, passa por ali uma legião de anjos super heróis: O mágico madrake, o fantasma, a miss Marple, a Lúcia, a madre Teresa e Alcapone carregando uma cruz. Gostavas que te oferecessem uma caixa de chocolates, pintarias a cara cor de terra, depois sentavas-te a desfolhar a aventura do escorpião do deserto. Há uma criança magra e um cão, a mãe do teu herói é uma cigana de Malta, tu lês as mãos a essa criança, ela abandona a tua imaginação e tu entras por uma porta, não vais encontrar o monstro se não o fabricares. Durante a ceia conversou-se sobre aquele penalty duvidoso, Maria Madalena disse que os pastéis de nata estavam pouco doces e o gordo obelix pediu água benta para borrifar o javali. Tu olhas-te para eles e ao mesmo tempo para os esboços de Leonardo um pintor muito conhecido do grande público. O teu marinheiro descalçou os sapatos e tu e ele dançaram em cima da mesa e tu rodaste a saia que bateu ao de leve na jarra do vinho sujando a toalha de linho. O teu marinheiro cheirou-te os pés, o velho Leonardo continuava a pintar e o gordo obelix continuava a trincar a sua perna de frango sob o olhar reprovador de alguns, pois que era sexta-feira santa. Tu de repente reparas-te que eras a única que estava nua, ninguém sabia da tua presença, Maria madalena roía as unhas e tinha umas conversas fúteis, a moda de Paris e o cheiro dos queijos italianos, parecia que aquele lugar era uma representação falsa do céu ou na catequese tinham-te enganado. Estavas sentada na atmosfera, não sabias para onde iam os heróis da banda desenhada quando morriam e agora vias o celebre repórter tintim a baptizar o seu cão milu na água da chuva e o celebre cowboy da tua infância a disparar estrelas da sua pistola. Com a mão afastas-te uma nuvem negra, parecia ter patas, podia ser uma formiga e tu pensaste em trabalho e também em coisas doces e debaixo das patas dessa nuvem formiga contemplas-te o mar azul como os olhos de coleóptera. Tu olhas o mar e tentas o desequilíbrio para a terra. Acordas! A espreitar á janela a fumar o seu cachimbo de ervas aromáticas está o capitão relâmpago, parece que é a tua primeira vida, apetece-te ir á lua, comer javali e ter ao teu lado o enigmático sorriso do marinheiro de Veneza.
lobo 07






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