Poemas : 

A ultima ceia do marinheiro de Veneza

 

Trago-te aos pés o cansaço, também com os olhos se observa a viagem que a morte faz. Tu escutas o movimento da máquina de costura, na tua cabeça, na tua memória de infância parece o cavalo de ferro. O teu pai está deitado, parece que tem os olhos vazios colados ao tecto, tu imaginas que as sombras no quarto são uma banda desenhada. Sais do quarto e fumas um cigarro, aquele fumo é a alma dele, não tens boas recordações, tu parecias um peixe fresco cheio de sangue a flutuar nas paredes do quarto. Agora não estás por aqui, encontras-te uma árvore que num dia de nevoeiro e sob o efeito de calmantes te recebeu de braços abertos, ias ao volante de um carro comprado em segunda mão. Não sei o que viste naquele momento! Nas nuvens cinzentas por de trás das montanhas ficava o colégio católico. A vida apagava-se como se tinha apagado o ar severo do teu pai. Naquele lugar soprou um vento de tal modo forte, que a revista de banda desenhada que estava no banco traseiro voo para a rua. A tua alma levava os olhos do marinheiro de Veneza, tu gostavas que fosse ele o teu pai, que tivesse havido tempo para o recomeço. Nunca te contaram uma história, nunca te deram um beijo verdadeiramente molhado e verdadeiramente profundo. Foi muito demorado o tempo que os bombeiros levaram a chegar ao local, o sol era muito forte, com muito cuidado pegaram no teu corpo, não era o momento mas o marinheiro apareceu-te. Tinhas receio de lhe dares as mãos porque estavam frias. O som do mar e o aroma da comida árabe chegou-te ás narinas. Estavas morta, não sentias nada, ou sentias que era a primeira vez que voavas na vida. O teu marinheiro tinha a barba de uma semana, com as tuas mãos de morta não é possível sentires a sua pele escarpada como a rocha. Tu não te queres encontrar com o teu pai, a tua alma podia ficar sentada nas dunas e tu de olhos muito fechados andas-te em volta do mercado, entras-te invisível no café do alfarrabista, não era o vento, era o vento a desfolhar o livro dos piratas, ainda havia o cheiro da agua ardente no ar das Caraíbas. A atmosfera da cidade era de um cinzento pálido como se a cidade fosse uma actriz a maquiar-se e a esconder-se atrás de uma cortina de intrigas. Olhas-te as nuvens, como seria o céu se fosse um livro de banda desenhada, seria possível falar com Deus sobre banda desenhada?! Tu olhas-te o fumo que saia da fábrica, parecia o bule onde a coruja bebe o seu chá, o marinheiro de Veneza contou que é preciso cuidado com os chás, tem de ser bem fervidos para que nenhum pedaço de aventura caia no precipício da angustia, o louco Rapustine com o gume da sua faca está á espreita para desferir o golpe no momento em que te sentires segura, ele está escondido com o pé na linha da primavera a recitar o alcorão. O teu pai tem muitas formas, tu o associaste ao louco Rapustine, achas que o teu pai inventou a máquina de matar a infância. Queres descer á terra, ouvir o grito único e implacável da vida no ventre a dizer que te ama, do teu filho a chorar quando lhe batias como se bate na vida que não tivemos. E tu ouves a balada do mar salgado, que coisa estranha estar-se perdido no meio das nuvens, tu te sentarás na mesa da última ceia ao lado de Maria Madalena, o teu marinheiro de Veneza partilhando o pão e o vinho. Quem é que sabe do encontro de Cristo com corto maltese?! Aparentemente não há frio nem calor, o teu marinheiro desceu das nuvens como o profeta que vê para além das montanhas. Os desejos da alma misturam-se com os desejos do corpo. Tens saudades do teu vinho. O professor inexistência fuma o seu cachimbo de ópio e tu de repente te apercebes que não tens roupa. O teu marinheiro sorri, tu não tens um espelho á mão, passa por ali uma legião de anjos super heróis: O mágico madrake, o fantasma, a miss Marple, a Lúcia, a madre Teresa e Alcapone carregando uma cruz. Gostavas que te oferecessem uma caixa de chocolates, pintarias a cara cor de terra, depois sentavas-te a desfolhar a aventura do escorpião do deserto. Há uma criança magra e um cão, a mãe do teu herói é uma cigana de Malta, tu lês as mãos a essa criança, ela abandona a tua imaginação e tu entras por uma porta, não vais encontrar o monstro se não o fabricares. Durante a ceia conversou-se sobre aquele penalty duvidoso, Maria Madalena disse que os pastéis de nata estavam pouco doces e o gordo obelix pediu água benta para borrifar o javali. Tu olhas-te para eles e ao mesmo tempo para os esboços de Leonardo um pintor muito conhecido do grande público. O teu marinheiro descalçou os sapatos e tu e ele dançaram em cima da mesa e tu rodaste a saia que bateu ao de leve na jarra do vinho sujando a toalha de linho. O teu marinheiro cheirou-te os pés, o velho Leonardo continuava a pintar e o gordo obelix continuava a trincar a sua perna de frango sob o olhar reprovador de alguns, pois que era sexta-feira santa. Tu de repente reparas-te que eras a única que estava nua, ninguém sabia da tua presença, Maria madalena roía as unhas e tinha umas conversas fúteis, a moda de Paris e o cheiro dos queijos italianos, parecia que aquele lugar era uma representação falsa do céu ou na catequese tinham-te enganado. Estavas sentada na atmosfera, não sabias para onde iam os heróis da banda desenhada quando morriam e agora vias o celebre repórter tintim a baptizar o seu cão milu na água da chuva e o celebre cowboy da tua infância a disparar estrelas da sua pistola. Com a mão afastas-te uma nuvem negra, parecia ter patas, podia ser uma formiga e tu pensaste em trabalho e também em coisas doces e debaixo das patas dessa nuvem formiga contemplas-te o mar azul como os olhos de coleóptera. Tu olhas o mar e tentas o desequilíbrio para a terra. Acordas! A espreitar á janela a fumar o seu cachimbo de ervas aromáticas está o capitão relâmpago, parece que é a tua primeira vida, apetece-te ir á lua, comer javali e ter ao teu lado o enigmático sorriso do marinheiro de Veneza.
lobo 07




 
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poetavoador
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 30/05/2009 00:03  Atualizado: 30/05/2009 00:04
 Re: A ultima ceia do marinheiro de Veneza
Olha, estou aqui encantada com teu texto. As imagens tão bem descritas de uma ultima ceia quase surreal. Ele me fez lembrar momentos da minha infância, quando ainda posso ouvir a máquina de costura de minha "Nona" italiana trabalhando pelas madrugadas afora, para ganhar o sustento da casa...Parabéns!! Vc escreve muito bem.

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