inciência

Data 04/07/2009 12:51:19 | Tópico: Crónicas

estou sentado algures nesta cidade litoral.
estou de frente para o mar.
estou prestes a terminar um poema. tenho um editor à minha espera para eu lhe enviar um poema a sair na próxima publicação do jornal.
tenho vinte minutos para o fazer. acabar o poema em vinte minutos. pensar em tudo na vida em vinte minutos que podiam ser uns milhares de segundos. se faço contas à vida perco-me na contagem. esta perdição é antiga.

o mar tem uma ciência dentro e fora dele mas há gente especializada nisso. gente que sabe todos os porquês e para quês. levaram anos até saberem isso: do mar e da terra o conhecimento é narrado em qualquer sala de aula. eu estive em algumas e aprendi sobre como enlouquecer em frente ao mar por palavras que não foram ditas.

tenho um poema com dez linhas labirínticas e cinco metáforas que cairam do céu. todos os poemas são pedaços de suicídio? ou de amor? prefiro não responder. o tempo não é nem deve ser apenas uma questão de modo verbal. tempo é o resultado dos fracassos e dos sucessos.
esqueço ao que vim: fazer o poema. o mar de repente encheu-se de coragem forte, ao contrário de mim quando um dia resolvi aprender a tocar sax e fazer disso a minha ciência pelas ruas de amesterdão.
agora é que me lixo: tenho um minuto para fazer um miserável poema, algo que toque a dor, o equivalente a alguém que morde um fruto e sinta uma lâmina por dentro, um abismo decrescente no paladar.
um minuto: sessenta notas jazzísticas no meu peito. se me lembro da minha infância recuso-me a ser homem. por isso agarro todo o meu esquecimento e invoco todos os poetas da minha estante de livros.

quinze segundos e o poema faz-se numa erupção cutânea, sai-me das veias num impulso acrobático. escrevo num estilo cego.
a minha mão luta contra as burocracias do pensamento para assim ser mais fiel.
estou em queda livre, sem páraquedas, com o meu saxofone nas mãos. melhor seria falar dos traumas de guerra ou sobre os malefícios do tabaco. o poema requer o seu tempo, desde a formação da casca ao rebentamento da casca, ele se demora. tem um processo quase vinícola: da vindima à garrafa na mesa.
ainda por cima vou mal de amores e isso desvia-me.

resta-me três segundos para enviar o poema ao editor. tem alguma ideia a sugerir? haverá algum método eficaz de como sobreviver a uma catástrofe? vamos dar as mãos a um poema universal, pode ser? assim ficaremos todos a ganhar, ok? vá lá, responda, diga o que está a pensar. vá lá, esforçe-se ao menos um bocadinho, reparta comigo a sua dor, os seus frutos magoados.
fim de tempo: o poema não foi a tempo de se concluir. não que chuva viesse estragar os meus planos. não que música seja uma mistura de bach com tiroteio numa favela.
hoje está um dia bom para lembrar que o poeta trabalha melhor com a espuma do mar nos lábios. conclusão: o poema nunca nasceu nem nunca nascerá num tubo de ensaio.



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