Crónicas : 

inciência

 
estou sentado algures nesta cidade litoral.
estou de frente para o mar.
estou prestes a terminar um poema. tenho um editor à minha espera para eu lhe enviar um poema a sair na próxima publicação do jornal.
tenho vinte minutos para o fazer. acabar o poema em vinte minutos. pensar em tudo na vida em vinte minutos que podiam ser uns milhares de segundos. se faço contas à vida perco-me na contagem. esta perdição é antiga.

o mar tem uma ciência dentro e fora dele mas há gente especializada nisso. gente que sabe todos os porquês e para quês. levaram anos até saberem isso: do mar e da terra o conhecimento é narrado em qualquer sala de aula. eu estive em algumas e aprendi sobre como enlouquecer em frente ao mar por palavras que não foram ditas.

tenho um poema com dez linhas labirínticas e cinco metáforas que cairam do céu. todos os poemas são pedaços de suicídio? ou de amor? prefiro não responder. o tempo não é nem deve ser apenas uma questão de modo verbal. tempo é o resultado dos fracassos e dos sucessos.
esqueço ao que vim: fazer o poema. o mar de repente encheu-se de coragem forte, ao contrário de mim quando um dia resolvi aprender a tocar sax e fazer disso a minha ciência pelas ruas de amesterdão.
agora é que me lixo: tenho um minuto para fazer um miserável poema, algo que toque a dor, o equivalente a alguém que morde um fruto e sinta uma lâmina por dentro, um abismo decrescente no paladar.
um minuto: sessenta notas jazzísticas no meu peito. se me lembro da minha infância recuso-me a ser homem. por isso agarro todo o meu esquecimento e invoco todos os poetas da minha estante de livros.

quinze segundos e o poema faz-se numa erupção cutânea, sai-me das veias num impulso acrobático. escrevo num estilo cego.
a minha mão luta contra as burocracias do pensamento para assim ser mais fiel.
estou em queda livre, sem páraquedas, com o meu saxofone nas mãos. melhor seria falar dos traumas de guerra ou sobre os malefícios do tabaco. o poema requer o seu tempo, desde a formação da casca ao rebentamento da casca, ele se demora. tem um processo quase vinícola: da vindima à garrafa na mesa.
ainda por cima vou mal de amores e isso desvia-me.

resta-me três segundos para enviar o poema ao editor. tem alguma ideia a sugerir? haverá algum método eficaz de como sobreviver a uma catástrofe? vamos dar as mãos a um poema universal, pode ser? assim ficaremos todos a ganhar, ok? vá lá, responda, diga o que está a pensar. vá lá, esforçe-se ao menos um bocadinho, reparta comigo a sua dor, os seus frutos magoados.
fim de tempo: o poema não foi a tempo de se concluir. não que chuva viesse estragar os meus planos. não que música seja uma mistura de bach com tiroteio numa favela.
hoje está um dia bom para lembrar que o poeta trabalha melhor com a espuma do mar nos lábios. conclusão: o poema nunca nasceu nem nunca nascerá num tubo de ensaio.
 
Autor
flavio silver
 
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Enviado por Tópico
AnaMartins
Publicado: 04/07/2009 13:00  Atualizado: 04/07/2009 13:00
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 Re: inciência
Genial este texto. Não, o poema não poderá nascer nunca de um tubo de ensaio, só de nós, dos nossos sentires e há mesmo alturas assim, em que o silêncio, o vazio também nos invade. E não é unicamente pela falta de inspiração, é pela necessidade (inconsciente, talvez) de vácuo, de nada dizer de nada sentir...
Esta é a minha leitura...

Um abraço!

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 04/07/2009 13:09  Atualizado: 04/07/2009 13:09
 Re: inciência
Concordo! Não nos inspiramos porque sim... É algo que vem de dentro e até inesperado. Surge!

Mas os sofrimentos amorosos sempre me inspiram!

Abraço.

Enviado por Tópico
Amora
Publicado: 04/07/2009 14:06  Atualizado: 04/07/2009 14:06
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 Re: inciência
Está espetacular esta tua crônica, Flavio, que li em segundos, todos longos, como quem come a tal fruta aguda que citaste.
Eu li em algum lugar que é o poema que põe o poeta no papel e acho que isso leva muito tempo para acontecer e o mar não é sempre o mesmo...

Parabéns, um beijo

Amora

Enviado por Tópico
Carlos Ricardo
Publicado: 04/07/2009 14:50  Atualizado: 04/07/2009 14:50
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 Re: inciência
Um texto muito vivo e muito interessante, a começar pelo sugestivo título. O poema nunca será concluído e pode até nunca ter começado.
Abraço.

Enviado por Tópico
Ibernise
Publicado: 05/07/2009 16:56  Atualizado: 05/07/2009 16:58
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 Re: inciência
Olá Flávio uma prosa muito bem ambientada, instigante a realçar o espírito da ausência de lógica na poética, algo que não precisa vir em caixas.

Compartilho em parte destas idéias, sendo numa outra vertente teórica.

Por este motivo vou escrever algo numa linha paralela, já que vc fez o convite...rsrs.Parabéns poeta, original, sensível, impecável.Como sempre um banho de talento.

Bjs

Ibernise

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 06/07/2009 17:39  Atualizado: 06/07/2009 17:39
 Re: inciência
Gostei deste poema escrito na primeira pessoa de um alguém qualquer.
Para o comentar não necessito mais que uns segundos, que tal como tu, já escrevi poemas em vinte minutos ou menos.
Mas em tubo de ensaio nunca, se entendermos isso como entendemos no teu texto.
Agora, que a escrita é uma oficina, é.
Abraço meu velho.