A ideia serve-se fresca

Data 21/07/2009 00:13:24 | Tópico: Textos

A ideia (morte)é para se servir enquanto está fresca. A navalha tenho-a sempre em cima da mesa para ir retirando a gangrena do pensamento. Guardo os cães a meus pés porque servem para uivar aos restos de sono por comer. Não tenho cofre onde guardar as ideias por isso não durmo nunca. Quando estou cansada recolho as visões nas mãos fechadas e apago a luz nos espelhos. De vez em quando do lado de lá sinto alguém espreitar-me, mas não sei bem quem é. Talvez seja o fantasma do que fui e me queira apanhar em falso para me copiar nas rugas do tempo. Mas tempo é coisa que não dou ao fio da navalha e as rugas são cartas a mim mesma que ainda não mandei. Por isso não posso contá-las, nem ver-me ao espelho, porque o lado de lá ao ver ou ouvir o lado de cá apaga o aqui. Sempre ouvi dizer que o tempo é uno e intimamente ligado ao espaço. Que em cada um a dimensão é uma pastilha elástica colada ao cabelo, impossível de retirar sem cortar o fio invisível que o liga à vida. Cada fio cortado sangra os podres da humanidade e deixa tudo a céu aberto. Descobri que estou certa em não me mostrar nunca para que a contraideia (contramorte) não me apanhe na curva do pensamento. Assim estou sempre um passo à frente dela e quando a agarrar estará fresca e pronta a servir «a minha ideia (morte) é vendê-la (hei-de vendê-la)bem cara».


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