QUANDO É O SOM QUE ME ASSOMBRA

Data 21/07/2009 20:36:19 | Tópico: Crónicas


QUANDO É O SOM QUE ME ASSOMBRA


Estou mergulhado num dilema sem medidas que tenho de resolver já. Quero dizer, dentro de uma meia hora, uma vez que é a minha vida que está em risco. A minha mente tem andado num frenesim de maço para cabaço, ora optando por Alfa ora por Beta. Alfa será a cegueira absoluta e Beta a surdez também absoluta. Certo é que de uma terei de ser privado para que o meu existir subsista. Desligar um nervo ou o outro, radicais interruptores, é o que me resta admitir e nesta hora sem perda de mora. O médico está na minha frente, estático, entre indiferente e compassivo. Admito que mais para este segundo lado, apesar de não querer ser esta a perspectiva dos meus olhos, decerto por o drama dizer respeito, a mim e não a ele. Quase que já não falta tempo. Tenho que decidir e acho que decidi há instantes que opto pela surdez. Ficarei a ver, a ver o mundo, a ver as pessoas, a ver a lua que sempre me enfeitiçou. Entretanto no instante decisivo, que não consentia mais dilações, ergo a minha mão direita num gesto rasgado como quem suspende algo. E de facto algo de importante ficou suspenso, ou melhor uma decisão desconcertante tomou-a o meu sentir mais profundo, ditado por um pequeno trecho de uma melodia de Mussorgsky que sempre me arrojou para as alturas e que não sei porque artes me chegou ao ouvido. Neste momento dirijo-me ao médico, que nesta hora tinha mais a cara de um juiz e pergunto-lhe: senhor Doutor por este caminho não volto a ouvir a Tosca de Puccini, o concerto de Arranjuez, o bolero de Ravel a deliciosa medieva Ai Linda Amiga…
-Claro que não. Decida-se que já passou o tempo. – Está decidido, mal por mal e por muito que o possa surpreender, prefiro ter acesso ao som. No meu caso pessoal e por estranho que pareça é por ele, pela voz, pela melodia (as minhas vozes e as minhas melodias) que com mais assombro vislumbro e me deslumbro.

Antonius



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