#14

Data 29/08/2009 21:47:49 | Tópico: Textos


a romper por certo a quietude mórbida do texto, ela estreita o ar dentro dos pulmões e com desenvoltura prende as palavras, todas, no canal que liga a boca ao estomâgo, a que os entendidos chamam esófago. é por certo este o momento de fumar um charro, fumá-lo até à epiderme do dedo indicador e esperar ver a mão ser comida por memórias felizes, imagens que não lhe pertencem de um tempo que não viveu. agora que a pressa se acomoda no seu colo, é tempo de fugir, às tantas esquece-se do seu nome, o seu ou qualquer outro nome que lhe chamam quando a vêem passar. e tantas vezes passa pelas mesmas ruas que até as pedras, ou os recantos comidos dos passeios, lhe sabem de cor os silêncios, lhe conhecem os gestos assimétricos, a forma incauta de andar como se corresse em direcção a alguma coisa desesperante. paralelamente a isto, põe-se a fitar o horizonte como se o comesse, e fossem das suas formas feitas as suas esperas. não há sentimento que a não encontre só, não há nada que a não faça triste, chorar é a única certeza que lhe trazem as noites que duram dias e dias e dias de pálpebras abertas. verá então, por certo, que o tempo é o exacto momento em que se perde do mundo, ou o mundo se perde dela e, no entanto, todos os espaços lhe parecem familiares, como se a memória selectiva que lhe pertence já lhe ocupasse todas as recordações que tem ou nunca teve. vem sentar-se aqui, ao pé de mim, como uma árvore despida, com o frio invernal a ocupar-lhe os lábios cerrados. vem falar comigo, com aquele olhar, que não consigo esquecer, de quem tudo perde sem ter culpa e ainda assim sente que é esta que lhe prende os movimentos sempre que quer avançar. recuar é o seu destino, e é com os braços e as pernas presas ao passado que ela caminha em círculos, ladeada pelos sonhos que não consegue realizar.



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