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#14

 


. façam de conta que eu não estive cá .

a romper por certo a quietude mórbida do texto, ela estreita o ar dentro dos pulmões e com desenvoltura prende as palavras, todas, no canal que liga a boca ao estomâgo, a que os entendidos chamam esófago. é por certo este o momento de fumar um charro, fumá-lo até à epiderme do dedo indicador e esperar ver a mão ser comida por memórias felizes, imagens que não lhe pertencem de um tempo que não viveu. agora que a pressa se acomoda no seu colo, é tempo de fugir, às tantas esquece-se do seu nome, o seu ou qualquer outro nome que lhe chamam quando a vêem passar. e tantas vezes passa pelas mesmas ruas que até as pedras, ou os recantos comidos dos passeios, lhe sabem de cor os silêncios, lhe conhecem os gestos assimétricos, a forma incauta de andar como se corresse em direcção a alguma coisa desesperante. paralelamente a isto, põe-se a fitar o horizonte como se o comesse, e fossem das suas formas feitas as suas esperas. não há sentimento que a não encontre só, não há nada que a não faça triste, chorar é a única certeza que lhe trazem as noites que duram dias e dias e dias de pálpebras abertas. verá então, por certo, que o tempo é o exacto momento em que se perde do mundo, ou o mundo se perde dela e, no entanto, todos os espaços lhe parecem familiares, como se a memória selectiva que lhe pertence já lhe ocupasse todas as recordações que tem ou nunca teve. vem sentar-se aqui, ao pé de mim, como uma árvore despida, com o frio invernal a ocupar-lhe os lábios cerrados. vem falar comigo, com aquele olhar, que não consigo esquecer, de quem tudo perde sem ter culpa e ainda assim sente que é esta que lhe prende os movimentos sempre que quer avançar. recuar é o seu destino, e é com os braços e as pernas presas ao passado que ela caminha em círculos, ladeada pelos sonhos que não consegue realizar.
 
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Margarete
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Enviado por Tópico
Xavier_Zarco
Publicado: 29/08/2009 21:56  Atualizado: 29/08/2009 21:56
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 Re: #14
Cara Margarete,
É bom, refrescante, lê-la. Este vínculo entre a palavra, o corpo e o mundo recordou-me a esparsos o trabalho do Luís Miguel Nava.
Um beijo
Xavier Zarco

Enviado por Tópico
Caopoeta
Publicado: 29/08/2009 21:59  Atualizado: 29/08/2009 21:59
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 Re: #14
..várias vezes passo por este "quarto". pelo 13,12.11 etc..é desconcertante quando assim se sente, fico sem palavras para tamanha magnitude , estas e as outras palavras.houve uma vez que te comentei..creio que a resposta que procurava nao foi a dada!(nao me foi dada nenhuma ,para ser mais concreto) nao me interessa como tal nao te tem interesse..espero te ler mais ,sempre assim..admito oscilaçoes..mas da seda dos pensamentos e de imagens raras..como tu!

até sempre ou até nunca.


Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 29/08/2009 22:55  Atualizado: 29/08/2009 22:55
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 Re: #14
A densidade das palavras, a forma quase opressiva da narrativa que quase não deixa respirar, torna nítido esse universo da desesperança sem consciência. Texto de oficina e talento para além de palavras de circunstâcia. Leitor à espera de novos desenvolvimentos

arfemo

Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 30/08/2009 01:13  Atualizado: 30/08/2009 01:13
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 Re: #14
como escreves,amiga.como vês.como sentes.
não é fácil a tua sina,creio.daqui estendo a minha mão.para que o entendimento na comunicação te alivie as penas.

um beijo,mulher
desta
alex