RECUERDOS DE ANNABÁRBARA

Data 02/09/2009 09:30:18 | Tópico: Poemas

às vezes esqueço que sou mulher, vivendo aqui no brasil. entro num botequim vagabundo. peço conhaque barato. entorno num gole só. esquenta por dentro. acendo um cigarro. viajo. agora tenho diante de mim o mar de ipanema. peço mais outra dose. talvez eu fique bêbada. machos de merda - não tiram os olhos de mim. acham que vão me comer. claro, não estão olhando para o meu jeans surrado, nem para os meus tênis sempre sujos. menos ainda para o dragão tatuado nas minhas costas que a camisetinha regata não esconde. olham pra minha bunda, como se uma mulher fosse só uma bunda. machos de merda. depois vão descarregar no banheiro. não percebem as lágrimas dos meus olhos, salgadas como o mar de ipanema. quando eu tinha 15 anos e apareci com este dragão tatuado nas costas, minha mãe me disse: Bárbara, você é um caso perdido. pouco antes de me mandarem pra frança, minha mãe achou metade de um baseado e duas camisinhas dentro da minha mochila: Bárbara, você é um caso perdido, ela repetiu. quando eu voltei de paris, grávida de um homem vinte anos mais velho, mais uma vez escutei minha mãe, soluçando desta vez: Bárbara, você é um caso perdido. quando eu soube que meu filho havia morrido dentro de mim, repeti pra mim mesma: Bárbara, você é um caso perdido. queria que o mundo todo se fodesse. queria morrer junto com meu filho. e acho que morri pela primeira vez. minha avó disse que era castigo de deus. então eu passei a sentir nojo de deus, porque roubou meu bem mais precioso. deus era um filho da puta - e pronto. quando minha irmã mais nova me emprestou seu colo pra eu chorar, descobri que nem tudo estava perdido. e disse comigo: Bárbara, a vida não é um caso perdido. me lembrei que eu tinha só dezessete anos. e se não tenho o mundo nas mãos, tenho o mar de ipanema aqui, bem dentro dos meus olhos.

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publicado na revista Ele&Ela,
sob o pseudônimo de annabárbara

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júlio


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