Apresentação: “Série discreta para uma noite”, David Fernandes (Temas Originais)
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Camaradas,
Como é hábito, partilho convosco o texto que serviu de base à apresentação do livro: "Série discreta para uma noite", de David Fernandes.
Boa leitura
Xavier Zarco

Apresentação: “Série discreta para uma noite”, David Fernandes, Temas Originais, 2009 (Tertúlia Castelense, 11 de Setembro de 2009)




Muito boa noite.



Renovando os agradecimentos que a Irene Freitas mencionou, tenho hoje o grato prazer de apresentar uma obra de David Fernandes. E este prazer traz, naturalmente, a tal expressão popular de “água no bico”. E porquê?



Porque eu e o autor de “Série discreta para uma noite”, que a Temas Originais entendeu editar, e aqui que ninguém nos ouve, fez muito bem, somos praticantes confessos de uma nova modalidade através da internet: o “pugilato cibernético”.



Para além das marcas, sobretudo ao nível dos olhos, que se ostentam orgulhosamente, sempre pensando que as do outro são, naturalmente, de maior dimensão, há o outro lado da questão, agora já sem ser em tom de brincadeira: o saber que o que está em causa é o texto, a ideia e nunca a pessoa.



E esta distinção é de sobremaneira relevante porque a Internet, melhor, as Listas de Discussão estão repletas de autores que são autênticos bibelots que a um simples toque se quebram, não em cascos, mas em lágrimas. E tudo porque consideram a actividade crítica como mero acto de aplauso, mesmo tendo, pelo menos assim o desejo, consciência de que é um aplauso fingido ou, pior ainda, caritativo.



Estamos, portanto, perante um homem frontal, capaz de dissecar o que lê e, nem que fosse só por isso, merece o meu destaque – e conquistou-o; entre os que partilham os mesmos espaços. No nosso caso: as Listas Amante das Leituras e Escritas.



Foi assim que me habituei a conviver com o David e a ter por ele uma enorme consideração, sobretudo quando discorda com aquilo que digo ou escrevo. Assim volto a repetir, agora já sem “água no bico”, que é, para mim, e perdoe-me a Irene que representa e bem a Temas Originais no Grande Porto intrometer-me como editor, um grande prazer editá-lo, prazer esse que é partilhado pelo Paulo Afonso Ramos, meu sócio nesta aventura empresarial.



E aqui entro na outra dimensão, a do autor, a do poeta, mais propriamente. Para além dos diversos poemas a que tive acesso através das listas que atrás mencionei, há uma altura concreta em que ficou claro para mim estarmos perante alguém que de facto é possuidor de talento.



No ano passado, ao ler a sua participação na Antologia Escritas, a número cinco, eis que encontro, não uma mera colagem de textos, mas um corpo poético bem definido, bem estruturado, quatro poemas sob o título: “época glaciar”.



E se dúvidas residissem em mim da capacidade do David Fernandes, eis que surge o número seis da Antologia Escritas, publicado este ano, onde o autor, novamente, nos oferta, não textos esparsos, mas um ciclo. “casas de xisto, abrigos de montanha”.



Diz a voz do povo, que, quer se queira quer não, é a mais erudita de todas, que não há duas sem três. E assim ocorreu: entra-me pelo correio electrónico adentro um ciclo de vinte e dois poemas, ciclo esse que enforma este livro.



Em suma, David Fernandes sabe que o leitor sabe. Isto é: a agregação de bons poemas não corresponde necessariamente à construção de um bom mote para a leitura e, em consequência, para a elaboração de um bom livro. Há que criar uma linha coerente, capaz de induzir no leitor sensações e pontos de partida para a necessária reflexão.



E este livro é, e agora, camarada David Fernandes, é que vão ser elas, a cabal demonstração da utilidade da poesia, e da arte de uma forma geral, no mundo. Esta é, felizmente para o autor, a minha leitura. Digo felizmente porque o tópico: utilidade; já foi diversas vezes dissecado no tal “pugilato cibernético”.



Quando leio: noite; neste volume atribuo ao signo dois sentidos. Por um lado: poesia; por outro: semente. E o mais curioso é que, para além da inclusão dessa palavra no título, ela só surge três vezes em todo o livro, curiosamente o mesmo número que corresponde aos versos constitutivos de cada poema. Há portanto uma terceira noite, isto é: um terceiro significado para noite, naturalmente para mim, neste volume. E é esse terceiro significado o que une poesia e semente.



Se a poesia tem a capacidade de gerar no outro a tal sensação, a tal reflexão, semente guarda em si a possibilidade de transformação. Ambas partilham da construção do eu.



Mas o poeta informa logo na abertura e cito: “de nada adiante apregoar peixe fresco”. Com este aviso quererá o autor dizer que na poesia nada de novo se pode encontrar?, ou por outro lado, chamará o autor a atenção para o potencial gerador da semente?, ou, finalmente, pretenderá informar que urge estar atento para as coisas do mundo, mesmo aqueles a que atribuímos, o que já é um grande passo, pouco significado para a construção do eu, do verdadeiro eu?



E a noite, a noite de facto é um território imenso onde é possível experienciar as coisas do mundo, mesmo que tudo já antes existisse e impossível fosse a construção de algo de novo.



E este “Série discreta para uma noite” leva-nos então para o deflagrar dos sentidos, para a necessidade de os manter despertos, capazes de nos trazer o que o mundo tem para nos ofertar. Cinco exemplos:



a visão - “os olhos aconchegam-se devagarinho”, escreve o poeta;

a audição – “ouvem-se os rastos dos aviões”, diz;

o olfacto – “cheira-se o marulhar dos barcos”;

o tacto – “sempre que sonho contigo perco a mão em mim”

o paladar – e neste não resisto a ler o fragmento 20 na íntegra: “Na pele, amargos restos de lágrimas, / poeira doce que entorpece / e amanhecerá, então sim, salgada”.



É a partir desta base de sensações que as coisas nos chegam para se transformarem em ideias, em palavras, em possibilidade de compreender tudo o que nos rodeia e, desta forma, criar as tais condições para a descoberta do eu, um eu que assim se encontra capaz de interagir com os outros.



A poesia, sob o signo desta noite, é portanto o fértil campo porque útil para a edificação desse eu. Repare-se que o autor sente a necessidade dessa interacção, mesmo que seja no plano onírico, porque é sempre nesse plano que de facto há a possibilidade de se sentir próximo da plenitude, daí, mesmo no final deste seu livro, referir, e passo a citar: “sinto-me arquitecto de realidades / que nunca terão uma primeira pedra”. Estou em crer que esta pedra é a primordial, o ponto primeiro de tudo o que existe e como tal lhe permite arquitectar realidades em si, através do acto reflexivo, o qual surge após as recolha das sensações.



Para concluir, repito as sábias palavras do prefaciador, que por mero acaso sou eu, é uma espécie de “gaba-te cesto que logo à noite há vindima”. Passo a citar: “Assim é este ciclo, esta série discreta, [...] um corpo íntegro, onde o poeta perscruta a noite, encontrando nela o espaço ideal para a consagração de múltiplos sentidos, sobretudo pela aproximação do silêncio e, nessa circunstância, a possibilidade de amplificação das coisas: sombras, sons, receios...”



Espero que apreciem a leitura deste livro tal como eu apreciei. Parabéns David.



Muito obrigado.

Criado em: 12/9/2009 9:43
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