Comentário a "memórias do cubículo.", de zaisth |
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2/10/2021 14:11 Mensagens:
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Veja a transcrição do poema no final deste comentário ou aceda aqui ao texto publicado originalmente pelo autor.
Desta vez, aventurei-me por um poema mais longo do que aqueles que costumo comentar. Escolhi-o porque me deixou uma forte impressão assim que o li pela primeira vez. Regressei depois várias vezes para o reler e continuo a descobrir nele novas ideias e sensações. Fica aqui o meu percurso de leitura nº 6 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link). Estamos perante um conjunto de oito segmentos, relacionados tematicamente. Cada um deles tem o seu título: "o homem nu", "desamor", "o escuro", "a cela", "o futuro", "memórias", "de(z)mandamentos" e "o fim do começo". O título geral lembrou-me imediatamente as "Memórias do Cárcere", de Camilo Castelo Branco, os apontamentos que escreveu quando se encontrava na Cadeia da Relação do Porto, a aguardar julgamento por crime de adultério, acusação nascida da célebre paixão que manteve com Ana Plácido. No poema de zaisth, a reclusão é outra: um "eu" que se encontra entre o "cá dentro" e o "lá fora", sem sabermos dizer qual deles é real ou qual deles é desejado ou, melhor ainda, qual destes mundos o "eu" é. Todos os poemas são escritos com recurso exclusivo a minúscula, o que permite uma grande maleabilidade do verso, como já tivemos oportunidade de comentar a propósito do poema "Homilia", de Simonekarinna. A pontuação está quase totalmente ausente -- o que também contribui para construção de ambiguidades -- sendo o ponto curiosamente reservado para os títulos e para o final do poema onde, em termos práticos, acrescenta muito pouco ao significado global do poema. Deste modo, parece limitar-se a fazer o mesmo que o "tenho dito" no fim de uma declaração. O primeiro segmento é intitulado "o homem nu". De imediato nos recordamos do mito do Génesis, do Homem e do pecado original, em que Adão e Eva se deixam convencer pela serpente e comem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Nessa altura, abrem os olhos (pormenor importante) e reconhecem-se nus pela primeira vez. No poema de zaisth, há uma redefinição do mito, em que se abrem os olhos para o fruto, mas verificamos uma falta de ação do "eu": a maçã encontra-se caída no chão, ainda viçosa, mas é deixada a apodrecer e, em jeito de justificação, diz que "por detrás da grade [...] a vida acontece". O sujeito poético parece estar enclausurado a contemplar o conhecimento que lhe foge. Ele reconhece-se nu, é certo, no entanto, limita-se a acontecer, ou seja, a existir sem compreender o mistério que avista do seu cárcere (o verbo acontecer tem qualquer coisa de fortuito -- afinal de contas, a forma correspondente latina "contingere" tinha como um dos significados "caber em sorte"). Este ser contingente encontra a sua identidade na sua escrita, na sua poesia, que na essência não é mais do que saliva, humor em estado líquido que se deposita no chão poeirento e que desaparecerá em breve. Porque, concluímos nós, a essência desta poesia é feita de momentos, não de eternidades. O segundo momento deste poema tem como título "desamor". Da prisão onde o "homem nu" se encontra, consegue descobrir uma passagem para ver mais longe: o amor. Trata-se de uma "janela indiscreta" e é impossível não relacionar o poeta com o protagonista do filme homónimo de Hitchcock, limitado a um espaço diminuto que é, simultaneamente, um lugar de curiosidade e de imprudência, de deslumbramento e de perigo. Talvez seja por isso que na segunda estrofe deste segmento surja o conhecido mito de Sísifo, condenado a repetir eternamente o suplício de carregar uma enorme pedra até ao cimo de uma montanha. Ao atingir a meta, a pedra rola declive abaixo e o castigo recomeça. Não é difícil compreender a comparação do amor a esse castigo, como se a chegada sublime à meta da paixão não fosse mais do que o início de uma longa queda. Preso na sua cela, o "eu" experimenta uma "fúria crescente", talvez por sentir a ausência, a solidão, de onde vem o desejo de esquecimento, com a imagem muito nítida de si mesmo "riscando na parede". A palavra "cela" aponta para dois contextos que vale a pena mencionar: o da cadeia e o religioso, ambos interligados pela ideia comum de algo penitencial. Ou seja, não se trata apenas de uma punição, mas também de uma via para a redenção, para uma suposta regeneração interior. Como vimos no início, talvez haja aqui uma alusão ao próprio ato de criação poética, que permite converter a dor e a frustração em algo belo e fecundo. Na última estrofe deste segmento, o sujeito poético admite que o que se passa fora da cela, para quem está dentro dela, é uma encenação, parece irreal. Haverá aqui alguma reminiscência do mito da caverna? A forma verbal "encenava" terá um valor de verdadeiro passado ou de simultaneidade em relação à forma "sinto"? O "eu" terá vivenciado o amor no passado, parecendo-lhe agora algo distante, quase como se fosse uma peça de teatro a que assistiu? Ou estará, no presente, a imaginar algo que nunca teve, tendo acesso a uma nostalgia de um ideal impossível, que apenas a poesia lhe permite experimentar? Chegámos à terceira parte -- intitulada "o escuro" -- que é o meu segmento favorito. Escrito numa linguagem límpida e luminosa, tem início com a figura de um cão cego que sente a presença do seu dono. Imediatamente nos vem à lembrança a imagem comovente de Argo, o cão de Ulisses, que espera vinte anos pelo seu regresso e que morre assim que o reconhece. No poema, a cegueira do cão, paradoxalmente, contamina o sujeito poético, envolto na escuridão, e simultaneamente permite o reconhecimento da sua identidade (aquilo a que damos o nome de anagnórise, na tragédia clássica). Desse ponto de vista, a verdadeira escuridão do título é aquela que cobre o "eu" e que consegue ser desvendada -- e, de certa forma, desfeita -- pela simplicidade de quem "quer sentir e não pode". Há uma luz que passa a envolver o "eu", uma luz que não sabemos de onde vem, a quem pertence, como surge... Referir-se-á ao amor, essa janela aberta ao mundo, que encontramos no episódio anterior? Referir-se-á à escrita, esse elixir que torna suportáveis frustrações e receios? Referir-se-á ao leitor que, sentindo cada palavra, pressentindo os seus mistérios, dá efetiva existência à poesia? Não sabemos, mas pressentimos aqui uma espécie de gratidão, num dos poucos momentos felizes desta sequência de poemas. Em "a cela", quarta parte do poema, facilmente nos identificamos com o "eu", que encontra um espaço de liberdade no seu cárcere pessoal. O "aqui", com que dá início a este segmento, parece indiciar, como em momentos anteriores, o espaço da poesia: é ela também, tantas vezes, o lugar exíguo e miserável onde podemos ser "fruta podre", um mero "número" entre muitos outros, mas, ao mesmo tempo, algo intemporal, "que não conta o tempo". Ter como nome jerônimo faz sentido neste contexto: significando literalmente "nome sagrado", designa um santo cristão que era eremita e tradutor bíblico, alguém que estava entre a pobreza voluntária absoluta e a riqueza do pensamento e da comunicação mística, próximo do espírito daquilo a que chamamos poeta. Segue-se-lhe o quinto segmento, "o futuro". Porquê "o futuro"? O poema não utiliza este tempo verbal, nem existem vocábulos que apontem para esta ideia. Será talvez uma estranha ironia, dizendo que a situação sombria dos poemas anteriores se mantém inalterável e que não há nada a esperar: é esse o futuro inexorável e definitivo. Os mitos clássicos das estrofes anteriores dão lugar a uma figura bíblica que — apercebemo-nos disso na terceira estrofe — coincide com o "eu", um Sansão que se descreve depreciativamente de forma implacável: "decadente / esquálido / calvo". Foi "traído pelo destino", que lhe ridiculariza os pensamentos (é um "filósofo de tolices"), que Dalila e os "anjos negros" humilham. Lembremo-nos de que, na parte final do episódio de Sansão, ele está agrilhoado a uma coluna que servirá para a sua vingança e, simultaneamente, provocar-lhe-á a morte. Será esse o "abismo / que nem ouso imaginar"? Falamos de abismo e passamos de imediato ao mito grego de Ícaro, o imprudente que se aproximou demasiado do Sol e que viu desfazerem-se as suas asas, perdendo-se numa queda que o transformou no símbolo perfeito da ambição desmedida. O sujeito poético diz que o seu Ícaro morreu, talvez na resignação a uma existência que lhe retirou a espontaneidade do risco. Assim nos dá a entender quando parece admirar o "rato que me fazia companhia", que "vive por instinto em sua toca", onde "é livre sem a luz solar". Aquele que encontra a felicidade na intimidade, longe das grandes vaidades e das grandes frustrações. No sexto segmento — "memórias" — sentimos que o cubículo de que o "eu" fala são também os seus pensamentos ("fantasmas / por aí tão livres [...] aprisionados em minha cabeça"). É colocada a questão essencial: "mas em sendo um / aqui eu me veria?". Ou seja, se a minha verdadeira vida é aquilo que sonho, quando eu desaparecer, encontrar-me-ei com os meus pensamentos na dimensão do poema? Será nessa altura que atingirei a maior realização, vivendo nas palavras pronunciadas pelo leitor e que subitamente despertam, vívidas, na sua mente? O título da sétima parte do poema — "de(z)mandamentos" — remete, mais uma vez, para o contexto judaico, para o mito de Moisés. Todavia, ao juntar graficamente as palavras "dez" e "mandamentos", surge uma forma sonoramente idêntica a "desmandamentos", ato de desmandar, de transgredir uma ordem. É o que o sujeito poético parece fazer. A "lei" a que se refere no primeiro dístico é conhecida pelo "eu" de cor (ou seja, por etimologia, "com o coração") porque foi o sujeito que a criou. Uma lei onde é possível encenar a própria morte. Pois não é verdade que a expressão "morro por algo" indica um forte desejo? Então "morrendo de ver-me morrer" pode ser essa ânsia mórbida de se ver ausente, "no avesso do avesso / do que fui lá fora". Parece haver nesse "lá fora" mais uma sugestão platónica, de um mundo inteligível, um paraíso onde só chega um foguete — deliciosamente aportuguesado de "esputinique" — que consiga fugir às fronteiras físicas do "espaço-tempo". E assim chegamos ao último segmento — "o fim do começo". Um título tão paradoxal quanto as antíteses dos "santos masturbadores", com a "santidade" que se vai atolar na "lama da hipocrisia". O final deste longo poema não é a serenidade que poderíamos esperar depois de uma longa caminhada. É um momento de fragmentação, de desespero e de fúria. Inesperado, forte, perturbador. "Insólito", a primeira palavra desta parte. O sujeito poético evoluiu do inocente que pinta a decadência do mundo para, a certa altura, se tornar no mártir de que os outros precisam "para se perdoarem". Ou seja, o "eu" apresenta-se como alguém que, do "belo incompreendido", passa para o "pensar-resumo / ordinário". Terá perdido o sentido "altruísta" da poesia, que vive nos outros, é certo, mas também para além dos outros? Agora resta-lhe o "autorretrato" de um espelho que é o seu reflexo num "quadro negro" de uma "sala negra", que desconstrói o "eu", que já não sabe onde se encontrar, fechado que está nestas "memórias do cubículo". Haverá lugar para reconstrução? Tic-tac, tic-tac... ........................................ "memórias do cubículo.", de zaisth ........................................ o homem nu. escrevo a essência com minha saliva no chão poento vejo a maçã o fruto da criação caída inda vermelha apodrecer por detrás da grade onde a vida acontece. ................................... desamor. o amor é a janela indiscreta onde olho além todos os sísifos amarem aparentes e esta fúria crescente faz-me ausente por esquecê-los riscando na parede desta cela o tempo o que sinto só sem ter que dividir o que lá fora eu encenava. ....................................... o escuro. meu cão cego sentia minha presença o que me via passava por mim tal sombra que se perdia nem ao menos sabia que o escuro que me encobria era a alegria de quem queria me sentir e não podia o outro era a noite o cão, meu dia. ........................................... a cela. aqui estou livre da prisão plural uma cama um urinol a porção o vazio a fruta podre meu sinônimo meu nome era jerônimo virei um número que não conta o tempo. ............................................. o futuro. sansão decadente esquálido calvo traído pelo destino filósofo de tolices à solidez impalpável qualquer dalila intocável pisoteando o ouro flertando com anjos negros me levam o sorriso há um abismo que nem ouso imaginar estou coxo mas o pior em pensar saltar é saber que ícaro morreu em mim assim passam os dias o rato que me fazia companhia vive por instinto em sua toca ali ele é livre sem a luz solar cumpre sua existência apodrece sem que nem eu tão íntimo possa notar da janela deste cubículo o sol me entristece. ............................................ memórias. fantasmas por aí tão livres aprisionados em minha cabeça serei um um dia vivo memorizo-os mas em sendo um aqui eu me veria? memórias são gotas que jogo no mar são palavras que só têm vida se alguém as lê. ................................ de(z)mandamentos. os decorei criei uma nova lei morrendo de ver-me morrer no avesso do avesso do que fui lá fora e a esta hora misturo o latim com o hebraico vejo uma bíblia em branco nas mãos dos fanáticos que veem o esputinique tal foguete pousar no paraíso o que eu preciso? simplesmente fingir no espaço-tempo de minha loucura na verdade que reinvento. ............................................ o fim do começo. insólito pintei ninfetas santos masturbadores pintei o ódio na tela real cresci em santidade mas na cidade atolei-me na lama da hipocrisia precisavam de um mártir para se perdoarem escolheram um artista altruísta na querência do belo incompreendido usava o sentido contrário do eu sou você não no ato mas no pensar-resumo ordinário meu ateliê é um quadro negro uma sala negra espelhada onde pinto o autorretrato do que fui do que sou um rosto disforme o frankenstein de cada um de toques sensíveis catando os estilhaços do quebra-cabeças desesperado pra me reconstruir o tic-tac é meu fardo.
Criado em: 2/2/2022 23:40
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Re: Comentário a "memórias do cubículo.", de zaisth |
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sem nome
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olá, Benjamin.
grato por dissecar o poema. poucos têm essa capacidade. não tenho tempo pra navegar aqui, contudo tuas palavras oxigenam minha caminhada no mar poético. um forte abraço e muito sucesso em tuas empreitadas nos campos físico e metafísico. e que tua intelectualidade cubra as vertentes da banalidade. poeta e escritor Rehgge.
Criado em: 5/2/2022 22:30
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