Comentário a "lembranças de menina", de rosafogo |
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Veja a transcrição do poema no final deste comentário ou aceda aqui ao texto publicado originalmente pelo autor.
Percurso de leitura nº 28 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link). Há poetas e poemas que nos impressionam, não tanto pelos experimentalismos formais e pela originalidade dos temas, mas pela discrição da sua composição, pela maturidade da sua voz, e pela segurança da sua sinceridade, qualidades que apenas se conquistam com o tempo e com a experiência, e que só se exprimem devidamente naquele ponto em que já não se precisa de provar nada a ninguém. É o caso de rosafogo que, com este "lembranças de menina", nos apresenta memórias de um "eu", que retratam a infância no universo das pequenas aldeias tradicionais portuguesas, envoltas num ambiente de nostalgia e saudade. As recordações começam com a referência à madrugada e terminam com a noite, esse momento de serenidade e de murmúrios em que o "eu" sente que lhe são devolvidos os sentidos. E como os sentidos são importantes neste poema! Temos fortes imagens visuais, como as padeiras a trabalhar ainda o sol não nasceu, as praças desertas, as crianças a jogarem com o pião, os namoros na fonte, os homens (possivelmente nas tascas) a jogar matraquilhos... Conseguimos escutar interiormente a linguagem dos galos, dos cães, das rãs, que se combina com o canto dos pássaros, os "gemidos do moinho" e o "sino da igreja", a que se sobrepõe a presença do "eu" e do "eco" dos seus "passos na ponte" (bela metáfora para a passagem do tempo da infância para a idade adulta). Há finalmente um pequeno apontamento olfativo, "da cozinha [de onde] ainda me vem o cheiro da sopa", um daqueles aromas familiares que tem o condão de nos transportar de imediato a uma outra era, terna e reconfortante. Juntos, os dados sensoriais compõem um retrato vívido do mundo desta criança, marcado também pela passagem das estações do ano: a primavera presente nas flores que despontam; o verão, nas cerejas colocadas nas orelhas; o inverno, no "musgo do presépio". Os ciclos da natureza têm um papel muito importante também em termos simbólicos, como marca desse fluir das existências, frágeis e passageiras, obedecendo às leis neutras e inexoráveis do destino. Já agora, uma anotação técnica que pode parecer deslocada, mas que está relacionada com o que tenho vindo a dizer. Há muitos anos, li um manual de escrita criativa que muito me influenciou (Writing Down The Bones, de Natalie Goldberg), que apontava – como característica fundamental a desenvolver num novo escritor – a procura incessante da propriedade das palavras. Ou seja, de forma mais simples, recorrendo a um exemplo, não utilizar o verbo "fazer" se o contexto aponta para ideias mais concretas, como "delinear", "construir" ou "confecionar". Mais um exemplo: não usar a palavra "livro" se pudermos especificar que se trata de um "dicionário", de um "romance" ou de um "alfarrábio". Trata-se de um conselho que foi naturalmente intuído por rosafogo, que não fala de "flores", mas delicia-nos com a variedade de "goivos", "lilases", "urzes" e "junquilhos", o que permite um enriquecimento suplementar da experiência sensitiva do leitor relativamente à realidade retratada. O vocabulário apropriado é, de facto, uma das formas mais eficazes de criar um ambiente verdadeiramente distintivo no poema. O vocabulário também pode ser importante na recriação do processo de transformação que o tempo opera nas personagens e nos locais que habitámos (e que nos habitam, também), trazendo de volta palavras que se vão esquecendo e passando a arcaísmos. No caso deste poema, vocábulos como "alcatruz", "açude" ou até o verbo "almejar" são um condimento especial para falar de um mundo e de uma língua que ainda resiste no universo popular português, mas que vai desaparecendo do imaginário das gerações mais novas. Aliás, a este propósito, talvez possamos interpretar o "tu", que aparece por instantes na antepenúltima estrofe, como esse leitor que não pôde presenciar o passado e que, por isso, talvez não seja capaz de se comover com as imagens pungentes da morte do "sol no horizonte", das aves que "já não páram aqui", voando "para parte incerta" ou – a minha preferida – a de que "já só restam janelas fechadas, nem uma fresta", sugerindo a inevitabilidade da passagem do tempo e da mudança. Em termos formais, o texto é de uma musicalidade extraordinária, combinando versos de métrica e ritmo diferentes, de modo a soarem sem quebras prosódicas que perturbem a melodia global do poema. Outro prazer a descobrir por aqui é a rima. Quem escreve sabe que, por vezes, um esquema rimático é construído à custa de algum artificialismo, pela seleção de palavras não propriamente relevantes para o texto, mas que são necessárias pela sua terminação. Pelo contrário, neste caso, as rimas fazem-se de palavras essenciais ao poema (apreciei em especial as combinações "lilases" / "rapazes" e ainda mais "junquilhos" e "matraquilhos"). Em suma, trata-se de um texto com que me identifiquei bastante – não propriamente pelo imaginário rural com o qual eu, menino de cidade, só lidava nas férias na aldeia dos meus avós – mas sobretudo pela sensação de criança fechada num corpo de adulto, surpreendido pela efemeridade da vida, mas descobrindo com o envelhecimento, nos refúgios da memória, que "cada dia é uma vida inteira", admirável expressão de Goethe com que rosafogo costuma rubricar os seus textos. ........................................ "lembranças de menina", de rosafogo já não ouço o galo de madrugada nem o cão a ladrar ao vento já não colho fruta nem flor plantada mas trago ainda os gemidos do moinho no pensamento, e as mulheres fazendo o pão com a farinha e fermento já não penduro cerejas nas orelhas nem procuro passarinhos novos nas telhas já não ouço o barulho dos alcatruzes nem apanho goivos liláses nem musgo do presépio, entre as urzes nem brinco com o pião como os rapazes já não olho os peixes no rio por entre os junquilhos nem ouço o eco dos meus passos na ponte, morreram os homens que jogavam matraquilhos enquanto morria o sol no horizonte... há sombras pelos campos e a praça está deserta, a fonte sossegada já não há moças namorando à noite pela calada aves já não páram aqui, partiram para parte incerta já só restam janelas fechadas, nem uma fresta! ninguém por elas espreita, apagou-se a vida nada mais resta... na aldeia agora, só toca o sino da igreja a lembrar quem se foi nada a minha fé almeja e a saudade é muita, e dói! ausentes estão minhas mãos e braços e de todos que partiram, perdi os abraços no baú que herdei, está minha velha roupa e da cozinha ainda me vem o cheiro da sopa o tempo tudo corrói, tudo traça só a aldeia continua cheia de graça pretendo manter-me viva com esta paixão dentro de mim, escrevo-te este extenso poema olhando o firmamento e tudo perdura até a saudade sem fim...no coração! perco-me por entre os laranjais e ouço as rãs, na memória os rumores e o piso escorregadio lembro por demais do açude, e da roupa branca no sabão, toco flores, num avanço e recuo doce e de novo a saudade no coração lembrando a menina, como se ainda o fosse. e aquele pássaro ainda me canta aos ouvidos e à noite o luar devolve-me os sentidos ouço um murmurar que me traz tranquilidade o murmurar duma infinita saudade...
Criado em: 28/6 22:47
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Comentário a "Oitenta anos", de Beatrix |
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Link para o texto original
"Oitenta anos", de Beatrix Oitenta anos no meu pescoço nu concebido por vós raposa-do-ártico belo animal híbrido e cru em hibernação traçada de tule anos sem segundos matemáticos ----------------------------- Percurso de leitura nº 27 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link) Costumo prestar mais atenção a textos que fogem dos temas recorrentes da poesia. Amor, morte, destino, revolta, melancolia... continuam a inspirar muito do que lemos por aqui e não só; são dignos e merecedores de reflexão, com certeza, mas acabam, muitas vezes, por apenas dar mais uma demão de tinta quando a anterior ainda está a secar. No caso do poema de Beatrix, temos dez versos muito originais, construídos de uma ambiguidade real, não aleatória, e limpos de qualquer elemento supérfluo, para irem direto ao centro da metáfora buscar alimento para subsistirem sem mais. Aliás, esta poderia ser uma linha de leitura entre as múltiplas que "Oitenta anos" nos oferece: um instantâneo sobre a sobrevivência poética para além dos adornos e para além da procura de uma resposta sentimental dos leitores. Aliás, o número de leituras e de "pontos" à data deste comentário mostra bem a recetividade geral a poemas como este, que apresentam um "virar de costas sedutor" ao leitor -- para usar o título do belíssimo ensaio de Frederico Pedreira, acerca da predominância da teatralidade sobre a intimidade na poesia que vai tendo mais popularidade entre o público. O texto de Beatrix fala-me de sobrevivência e da relatividade do tempo, sujeito a acelerações, a travagens e a derrapagens como se fosse um veículo fora de controlo. Mas vamos devagar, que o texto merece ser saboreado com calma. O "eu" poético surge-nos, porventura, como filhote da raposa-do-ártico. Repare-se, a este propósito, na expressão "concebido por vós", que parece reminiscente da jaculatória "Ó Maria, concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós", como se houvesse algo de místico na crueza deste ser. Não por acaso, o adjetivo "cru" aparece acompanhado de "híbrido", que poderia muito bem ser uma referência à união hipostática da teologia cristã. Não fiquem impressionados: estava a pesquisar sobre a essência divina e humana de Cristo e, por uma casualidade, apareceu-me este conceito. Nesta sequência, fica bem um momento National Geographic: com o nome científico "Vulpes lagopus", a raposa-do-ártico é um animal que obviamente está preparado para as asperezas do tempo gelado, com uma pele que ajuda à camuflagem para fugir aos predadores e que se satisfaz com tudo o que encontra: sejam roedores, insetos, fruta e até fezes. Hiberna e, num território tão agreste, dura pouco mais de um ano. A voz do poema, "traçada de tule" como virgem pré-nubente, adquire oitenta anos no seu "pescoço nu", sem colares ou coleiras que a aprisionem. Os "anos sem / segundos matemáticos" determinam esse envelhecimento precoce, que lhe permite sobreviver e que lhe dá uma beleza dúplice: entre a imaturidade e a experiência, entre a ingenuidade e a sabedoria, entre o instante e a eternidade. "Num' hora acho mil anos, e é de jeito / Que em mil anos não posso achar um' hora" (aqui, vai um piscar de olhos a Camões e ao nosso Alemtagus). Uma última observação vai para a única rima do poema, entre os adjetivos "nu" e "cru", como que a afirmar que a poesia é essa realidade nua e crua, dissimulada sob o tule da metáfora, que permite sonhar com o infinito e com a sobrevivência a mil noites de despedida e de regresso – presente no título, já agora, da banda sonora deste poema, réplica roubada a "Romeu e Julieta". Afinal de contas, chego à conclusão que o amor não anda assim tão longe daqui...
Criado em: 4/5 16:07
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Re: A Música que nos inspira - OC |
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A banda sonora do Olhar Cego ![]()
Criado em: 30/9/2024 14:02
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Re: Acordar o LP |
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Here we go again... A administração não nos ouve, são uns ditadores, só olham para o seu umbigo... Quem conhece a história do projeto Luso-Poemas sabe que, de tempos a tempos, a administração tem de levar com a cassete do costume e, se quiser fazer alguma coisa, tem de se cingir ao que é relevante e ignorar o que não tem importância. Prisaoincolor: Aproveite este espaço, traga a sua cultura e sua inteligência para os seus poemas e para os seus comentários. Apreciamos muito a sua presença. Deixe lá a rabugice, alegre-se com o dinamismo que voltou ao site e ajude-nos a melhorá-lo com os seus textos. Se tem dúvidas sobre a recetividade dos primeiros poemas do "Olhar Cego", veja o número de leituras ao longo da atividade e compare-as. Terá uma surpresa. É tão bom saber que nos leem! Não há nenhum espaço na Internet como o LP, com uma oferta de poesia tão diversificada e com iniciativas tão estimulantes. Isso é uma riqueza e precisamos de a valorizar. Haverá sempre a possibilidade de ir mais além, mas não deixemos de apreciar o que já temos. Abraços para todos e obrigado pelas vossas contribuições.
Criado em: 21/9/2024 10:09
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Re: Acordar o LP |
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Observação de Prisaoincolor (link): Fica só um reparo da minha parte, como mero observador. Não me parece justa a forma como os textos estão a ser tornados públicos. Independentemente da qualidade de cada, há participações, refiro-me às colocadas há menos tempo, que podem beneficiar de um pico de tráfego que o site possa estar a ter, e assim conseguir mais pontuações. Agora se calhar já é tarde para corrigir, mas se calhar se todas as participações fossem colocadas em simultaneo, era mais justo. Resposta: Obrigado pela observação, mas acho que não deve ficar preocupado. Se passar os olhos por todos os poemas do "Olhar Cego" publicados até agora, verá que o número de comentários é equilibrado, sem "picos". Assim sendo, concluímos que a divulgação pouco a pouco tem resultado muito bem, permitindo que se possa apreciar devidamente os textos. Apresentá-los "em avalanche", 40 de uma vez, seria certamente dissuasor de uma leitura tão aprofundada de cada um deles, como tem sido feita.
Criado em: 20/9/2024 20:23
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Re: Acordar o LP |
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Obrigado, rosafogo. Todos temos tentado que o ambiente seja bom e acolhedor, mas este site é tão diversificado que, às vezes, pode surgir um ou outro momento desestabilizador. Que esses momentos nos façam refletir e melhorar, é esse o nosso desejo. Aproveito a sua deixa e sensibilizo todos os utilizadores a passarem a palavra aos Lusos que entretanto nos deixaram, para os convidar a regressar e a participar nas nossas atividades.
Criado em: 18/9/2024 13:04
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Re: Acordar o LP |
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Olá, Alemtagus.
A intenção da administração é dinamizar atividades regulares com regras sempre diferentes, procurando, em cada uma delas, experimentar novas formas de estimular a escrita. O tópico "Acordar o LP" continuará aberto para que se possam apresentar ideias para os eventos seguintes. Desta vez, temos um jogo e não um concurso. Não vamos fazer seleção de textos, mas deixar que os lusos mais afoitos, que não tenham receio de críticas, se arrisquem a serem comentados sem se saber a sua identidade. O número de 20 participantes é uma proposta que tem como base o número máximo que tivemos numa das últimas atividades (foi o número de lusos que contribuíram com os seus poemas no evento “A Mulher e um Poema”). Desde já, agradecemos sugestões para próximas iniciativas. Podem ser temas, regras de funcionamento, nº de participantes, formas de seleção etc. Serão sempre ponderadas pelo grupo da administração e aplicadas de acordo com a sua exequibilidade e com as limitações informáticas do site. Um abraço para ti e para todos os lusos.
Criado em: 14/9/2024 11:09
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Re: Acordar o LP |
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Caro Prisaoincolor, De facto, a administração foi recetiva à sua ideia de incentivar os utilizadores através da publicação de um livro e ficamos-lhe gratos por isso. O ebook talvez possa chegar ainda mais longe do que um livro em papel se for bem publicitado e pretendemos fazê-lo da forma mais eficaz possível. Quanto à forma de participar no projeto, está descrita detalhadamente no link que acompanha o vídeo (este apenas pretende chamar à atenção para o evento). Coloco aqui também para recordar quem não tiver reparado nesse pormenor: Link para o evento Relativamente aos textos de qualidade que não terão o destaque que merecem, ajude-nos por favor simplesmente comentando-os. Certamente que, ao destacá-los, haverá outros que se interessarão e lhe darão outra atenção ao ver o seu nome associado a eles. Muito obrigado pelas sugestões sempre pertinentes.
Criado em: 13/9/2024 14:46
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Re: Acordar o LP |
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Obrigado, Beatrix. Ficam registadas as sugestões, que são muito pertinentes.
Criado em: 11/9/2024 13:14
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Re: Acordar o LP |
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A administração do Luso-Poemas está a preparar atividades que respondam às preocupações dos nossos utilizadores. Agradecemos-lhes as sugestões e críticas, e esperamos continuar a fazer um caminho de evolução que possa tornar este site um espaço que vá, cada vez mais, ao encontro da sua missão de promoção da lusofonia poética, na linha das palavras de HorrorisCausa.
Criado em: 9/9/2024 20:09
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