Comentário a "Imprevistas madrugadas", de maria.ana
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"Imprevistas madrugadas", de maria.ana

E talvez hoje me possas dizer

da passagem de uma luz generosa

em que te aceitas vivo e te confundes

com as árvores da manhã.

Caíram sobre o silêncio do rio

imprevistas madrugadas de primavera.

E tudo muda, o vento, o mar,

as terras alagadas. És tu a memória

do mundo, a pele das casas caiadas.

És tu o tempo do teu corpo, a raiz da tua

estrada.

És tu a folha branca e a palavra clara

em que refazes o chão onde tudo se aproxima

dos fascínios adiados dos teus olhos.


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Percurso de leitura nº 15 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Não sendo crente, fascina-me todavia o imaginário judaico-cristão. A educação religiosa que tive moldou fortemente a imagem que tenho do mundo e de mim mesmo, apesar de os seus mitos não despertarem em mim aquilo a que chamam "". Contudo, experimento a sua beleza e o seu mistério, o assombro e a solenidade da sua linguagem.

Há uma imagem do Evangelho de que gosto particularmente e que se relaciona com o período do ano que está a decorrer. Trata-se da "túnica sem costura" de Cristo, que os soldados deitaram à sorte enquanto o crucificado agonizava.

Trata-se de uma metáfora de perfeição e de unidade que, por exemplo, Sophia M. B. Andresen traz para a sua "Arte Poética II", falando do vínculo, ou melhor, da aliança que existe entre o universo, as palavras e o "eu". A poesia, segundo ela, não é uma explicação 'do' universo, mas 'com' o universo, em que tudo se conjuga para trazer equilíbrios à criação artística: equilíbrios de palavras e equilíbrios de momentos.

Esta reflexão vem a propósito do poema "Imprevistas madrugadas", de maria.ana, uma voz que, mais do que a surpresa e a inovação, procura esses mesmos equilíbrios, essa mesma aliança que une um "eu" sensível e vulnerável a uma realidade frágil e fugidia, procurando recuperar "todas as letras que / por esses dias / já me tinham sido confiscadas" — como diz no, também belíssimo, "Por esses dias".

Poemas como estes podem passar discretamente, parecendo repetir uma e outra vez as mesmas imagens, a mesma tranquilidade, a mesma calma de uma poesia com tradição de séculos, das albas trovadorescas e do "locus amoenus" camoniano à placidez de Caeiro e ao paganismo de Reis.

No meu caso, enquanto leitor que aprecia mais o sobressalto e a provocação poéticos, nem sempre tenho a disposição adequada para poemas como este. Mas há alturas (como hoje) em que esta é a leitura que mais aprecio.

Quando se fala nos quatro elementos primordiais — água, terra, ar e fogo — talvez se devesse acrescentar um outro: a luz. É este o elemento que dá forma a este poema, trazendo para ele toda a sua simbologia ancestral: as ideias de clareza, de nitidez, de tomada de consciência, da revelação.

O poema começa com os primeiros raios da madrugada, um momento que tem tanto de banal como de surpreendente. Algo que todos conhecemos e partilhamos, mas que, curiosamente, raramente presenciamos. Algo que é previsível e simultaneamente assombroso, uma dádiva que um crente qualificaria como "generosa", para usar o adjetivo do poema.

Essa luz não é permanente, mas uma "passagem", o momento fugidio comungado por um "tu" com as "árvores", esses gigantes do "silêncio", que vivem as mais básicas regras do Universo, ensinando-nos tudo o que há para saber.
Aceitar os ciclos da vida, as suas cores, os seus sons, a sua crueza ("E tudo muda, o vento, o mar, / as terras alagadas").
Vestir as memórias como "a pele das casas caiadas", desvelar "o tempo do teu corpo", com o passado como única realidade, perante um presente e um futuro que seriam meros "fascínios adiados dos teus olhos".
Restaurar a realidade pela linguagem da vida, seja pelas palavras-palavras, seja pelas palavras-gestos ou pelas palavras-silêncios.

Quem é esse "tu" a quem se dirige o "eu"?
Uma verdadeira segunda pessoa, que nos desperta para a ordem do mundo, pelo amor, pela admiração, pela mensagem que nos destina?
O próprio "eu" fragmentado, que se contempla e procura, no mais recôndito de si mesmo, o sentido da "palavra clara", ou melhor dizendo, a costura invisível dessa túnica que é a "folha branca"?
Ou estará a falar de nós, leitores, convidados a parar e, por um momento, abandonarmo-nos à contemplação de um segredo que sempre esteve, mudo, à frente dos nossos olhos?

Criado em: 4/4/2023 11:52
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