Comentário a "Amor Alienígena", de ZeSilveiraDoBrasil
Administrador
Membro desde:
2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
Link para o texto original

"AMOR ALIENÍGENA", de ZESILVEIRADOBRASIL

abduzido, mas ainda sou teu,
ou não sei se ainda sou, eu...
meu corpo é éter, eternamente teu,
mesmo fractal, fatal...
sou tua presa, me lesas e tu ilesa;
invadiu-me, dominou-me, e evadiu-se...
fizeste com que as lágrimas não fossem mais
minhas,
prantos invisíveis...
dos meus risos não serem mais meus,
sons inaudíveis, sensações voláteis, insensíveis,
cores inodoras...
nuvens, névoas, pó;
verto-os e rio...
sonho sobrenatural,
porquanto, tu és domínio de mim
desacordado nesse amor alienígena.


-----------------------------

Percurso de leitura nº 19 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Sempre tive inveja de quem consegue adaptar uma letra a uma melodia ou vice-versa. Já fiz várias experiências e acabei por desistir porque, para mim, é um exercício dificílimo. Não é só encaixar palavras e fazer rimas. É fundir sons que passam a não viver independentes uns dos outros. Adoro ver os vídeos do Zé Silveira, pois sinto que há ali qualquer coisa mágica que não sei bem explicar, mas que faz sentido. A verdadeira poesia também é assim. No caso deste poema, que (ainda) não foi musicado, há também esse lado eufónico, que se sente tão bem na declamação que se pode escutar no vídeo do YouTube que acompanha o texto:



Diria, a brincar, que este "Amor Alienígena" é um cruzamento de Camões com Gal Costa. É um vício que tenho, este de andar a cruzar memórias sempre que leio um texto. São vasos comunicantes que, inevitavelmente, se influenciam uns aos outros apesar da natureza diversa de que são compostos.

Camões tem um soneto cujo incipit é "Quem vê Senhora claro e manifesto", que explica que a felicidade de presenciar o olhar da amada merece que se lhe ofereça, em troca, absolutamente tudo: "a vida e alma e esperança". E mesmo assim, diz-lhe o poeta que "quanto mais vos pago, mais vos devo".

Quanto à Gal Costa, aparece aqui por causa de uma canção fabulosa, intitulada "Não identificado", que conheci através do filme "Bacurau" (surpreendente a todos os níveis). A letra identifica o "eu", solitário e enamorado, como um objeto não identificado a ser lançado no "espaço sideral".



No poema de Zé Silveira, as ideias do poeta português e da cantora brasileira estão bem presentes, mas são combinadas de outra forma, com uma estrutura que se constrói a partir de três recursos expressivos fundamentais: a alegoria, o oxímoro e o jogo de palavras.

Se tivéssemos de definir de uma forma o mais simples possível, a alegoria seria um conjunto de metáforas ligadas entre si. É uma figura de estilo que encontramos nos mais diversos campos — pensemos, por exemplo, nos carros ditos "alegóricos", presentes nos desfiles carnavalescos, mas também no campo religioso (os sermões de António Vieira e, antes dele, as parábolas de um tal de Jesus Cristo, são paradigmas absolutos no uso da alegoria).

Em "Amor Alienígena", há um campo lexical que remete para o imaginário da ficção científica, a começar pelo adjetivo do título e, depois, por palavras como "abduzido", "fractal", "invadiu"… Todas elas nos transportam para os testemunhos dos contactos imediatos de quinto grau, ou seja, quando os seres humanos — voluntariamente ou não — se aproximam diretamente dos extraterrestres. O alienígena será, então, o amor, um lugar estranho e desconhecido que subjuga o sujeito poético. Ele passa a uma simples "presa" e perde o autodomínio de tal forma que deixa de ser quem ele conhece e até mais: deixa de saber se ainda possui existência — repare-se no detalhe da vírgula no verso "ou não sei se ainda sou, eu".

É como se fosse contaminado por um vírus que não mais o abandonará, que o faz sofrer de uma forma nova, contraditória, como se pode observar nos oxímoros "sons inaudíveis" e "sensações […] insensíveis". Há uma espiritualização do amor, que converte o "eu" em "éter", essa terceira componente para além do corpo e da alma que, nas palavras de Saramago no "Memorial do Convento", é "a vontade dos homens que segura as estrelas, é a vontade dos homens que Deus respira". Nessa obra, a forma do éter é a de uma "nuvem fechada", que tem correspondência (por coincidência ou não) com o verso "nuvens, névoas, pó", tradução perfeita da sublimidade efémera do ser humano.

Essa efemeridade que procura a perenidade está bem presente no jogo de palavras do verso "meu corpo é éter, eternamente teu". Como este, existem outros jogos de palavras igualmente expressivos, como "me lesas e tu ilesa" ou "invadiu-me, dominou-me, e evadiu-se". Agrada-me especialmente a associação "fractal, fatal", em que a fragmentação que o "eu" experimenta se relaciona com o Destino e, eventualmente, com a morte do que era antes da paixão o arrebatar.

Para terminar, destaco no último verso o verbo "desacordar", que aponta para um duplo sentido particularmente interessante. Por um lado, temos a sugestão de um estado contrário ao da vigília, em que o sujeito poético entra na surrealidade das "cores inodoras", num universo de profunda letargia (o que, mais uma vez, nos transporta para os relatos oníricos de abdução da ficção científica). Por outro lado, temos a ideia de "desacordo", da estranheza interior que todos experimentamos quando nos apaixonamos — pois sempre pensamos saber o que é a natureza e as características do amor, mas a verdade é que sempre nos surpreende.

Criado em: 4/8/2023 11:26
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Re: Comentário a "AMOR ALIENÍGENA", p/benjamim
Administrador
Membro desde:
22/11/2018 17:04
De RIO - Brasil
Mensagens: 1917
.
.
.

De súbito fui tomado duma alegria incomensurável logo após te ler e reler em fartos goles numa magistral interpretação do texto que emergiu da minha acidental ou espiritual inspiração; fatos que ocorrem alheios à minha vontade e que me impele à criação... passei décadas para acolher os ditos dos meus amigos que afirmavam que eu não me inclinava somente à escrita mas também à música e pintura; aprecio crer preferencialmente nessas duas últimas opções hobbeis (me perdoe a imodéstia), quais venho desacelerando há três anos desde a recidiva do câncer. Sou um cara simples, acostumado a misturar-me às realidades do povão, daqueles mortais como eu que acreditam que compor é um acidente literal natural... diferente de acidental,  óbvio, é o que o amigo poeta benjamim nos mostra do quão capaz és na composição de dizeres; isto comprova-se aqui neste é noutros 'percursos de leitura' que há muito venho acompanhando, serve-me sobremaneira de aprendizado à interpretação. Este seu dom não é desprezado momento algum do leitor atento, se percebe seu conhecimento largo da Língua Portuguesa, das nuances entrelinhadas da gramática, e uma capacidade de interpretação de textos invejável (inveja boa).
Não é para qualquer um tal aptidão, prospectar textos e içar para o nossop olhar entendimento como; "São vasos comunicantes que, inevitavelmente, se influenciam uns aos outros apesar da natureza diversa de que são compostos."
Honrou-me pelo modus aprofundado e distinto que impôs ao meu poema. Quisera eu, um dia, poder distingui-lo também num formal igual de dizeres das suas obras.
No mais, te agradeço, pelo que proporcionou a este longevo compositor. Vozes uníssonas se levantarão na afirmação óbvia de que és uma das mais imprescindíveis personalidades do Luso-Poemas.
Aquele abraço caRIOca!

Criado em: 5/8/2023 16:21
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Re: Comentário a "AMOR ALIENÍGENA", de ZESILVEIRADOBRASIL

Membro desde:
6/8/2009 19:29
De Sorocaba - SP - Brasil
Mensagens: 2022
Fico imensamente feliz por ter visto este tópico e ter a oportunidade de ler esta troca tão enriquecida de talentos.
Agradeço.
Abraço.
Helen.

Criado em: 6/8/2023 21:18
_________________
Helen De Rose
No Clube de Autores
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Re: Comentário a "AMOR ALIENÍGENA", de ZESILVEIRADOBRASIL
sem nome
feliz que tenha voltado :)

Criado em: 6/8/2023 22:41
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Re: Comentário a "AMOR ALIENÍGENA", de ZESILVEIRADOBRASIL
Administrador
Membro desde:
22/11/2018 17:04
De RIO - Brasil
Mensagens: 1917
.
.
.
Você, Helen, que sempre nos presenteou com sua poética, nos animou persistir na escrita, é mais do que um presente receber este comentário seu. Feliz com seu retorno. Concordo pleno com o Jorge.
Meu abraço caRIOca!

Criado em: 7/8/2023 0:14
Transferir o post para outras aplicações Transferir







Links patrocinados