O Poema Perfeito
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Sendo o meu vigésimo percurso de leitura (nunca pensei chegar tão longe!), achei que poderia assinalar a "efeméride" com algo um pouco diferente.
[Se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link]

O comentário de hoje parte de uma questão: o que é um "poema perfeito"? Não é necessário acrescentar a expressão "para mim", visto que que esta é, obviamente, uma pergunta tão subjetiva que cada um de nós terá juízos de valor divergentes sobre os textos que mais aprecia e sobre as razões dessa perspetiva.
Para quem conhece as minhas leituras neste espaço, não será difícil depreender os meus gostos, mas achei que valeria a pena sistematizar alguns dos aspetos que mais aprecio num poema, exemplificando com um texto que os reunisse.

Entre tantos poemas e poetas extraordinários, escolhi o texto de alguém de quem me sinto particularmente próximo, quer na construção poética, quer na área do comentário literário.
Chama-se Rogério Beça e até já houve mais do que um colega aqui do Luso a perguntar-me se eu seria um pseudónimo dele. Da primeira vez que aconteceu, fui apanhado de surpresa e confesso que fiquei um pouco incomodado — afinal de contas, todos desejamos ter uma identidade poética que se distinga das outras —, mas agora sinto essa associação como um elogio, atendendo à qualidade do seu trabalho, fonte permanente de prazer, de leitura e de aprendizagem.
A maioria dos poemas deste autor poderiam ter sido selecionados para este exercício, mas escolhi "a ex-mulher de Lot". Assim que o li pela primeira vez, logo me atraiu e, desde então, tenho feito a sua releitura várias vezes, levando-me a várias reflexões e descobertas. Passo a transcrevê-lo, mas, se desejarem ver o post original, basta clicar aqui.

"a ex-mulher de Lot", de Rogério Beça

Lavo as mãos e aponto o dedo,
indico,

prevejo a direcção.

Na lição do saco e do sustento
esqueço
o vento.

Sujo as mãos de sujo,
agarro,
esculpo
e desculpo;

sou um verde ma'duro Prometeu
amigado de águia, ou do condor.

Se olhar para trás
trazido pelo costume de olhar (vício maldito),
arribam os mesmos abismos,
singulares e circulares
e uma neoplasia:

subtraio das lágrimas
o sal.

Se tivesse de apontar a característica que, em primeiro lugar, mais me atrai num poema, penso que resumiria desta forma: não ser condescendente com o leitor. Não é a beleza, não é a mensagem, não é o virtuosismo… o primeiro fator de atração, para mim, é o desafio que o poeta nos coloca, que nos impede de ficarmos passivos perante o texto. É o facto de não nos explicar tudo e termos de ir à procura do sentido — dentro ou fora de nós.
Há um risco que se corre com textos destes, que o leitor se sinta ameaçado e desista, o que faz com que haja a tentação de o agradar facilitando o contacto com o desconhecido — esquecendo-se de que a falta de mistério perverte a natureza da poesia.

Por exemplo, o título do poema do Rogério tem uma referência a alguém em particular, chamada Lot. Um leitor indolente poderá não perder um minuto a procurar informação sobre a personagem, o que é pena.
Lot aparece na Bíblia, no Antigo Testamento, como alguém que conseguiu fugir do célebre desastre que se abateu sobre as cidades de Sodoma e Gomorra, até hoje conhecidas pela sua devassidão. Todavia, a mulher de Lot, no momento de retirada para as montanhas, desrespeitou um dos ditames divinos (não olhar para a cidade devastada), sendo castigada com a sua transformação numa estátua de sal.
Como título do poema, provoca no leitor uma grande curiosidade, que lhe dará certamente muito prazer enquanto faz perguntas a si próprio. De que tratará o poema? Do pecado e da devassidão? Da queda e da redenção? Da ousadia e do castigo?

O mesmo acontece com a figura de Prometeu, que surge na quinta estrofe. Este titã, segundo a mitologia grega, foi o responsável pela revelação do fogo aos homens, o que nos remete para os poderes que este ser possui e que o distinguem dos outros animais: a epifania da civilização, a intensidade dos sentimentos, as capacidades de construir e destruir…
No poema, o "eu" identifica-se com esta personagem, que luta pela criação (o termo grego "poiesis" tem precisamente esse sentido) e que acasala com a ave que o tortura (no mito original, Zeus castiga Prometeu, condenando-o ao suplício de uma águia que lhe dilacera as entranhas diariamente), dando a entender talvez o prazer das agruras que se sentem no momento do parto de um poema.

Nem sempre o mistério está relacionado com uma palavra isolada. Veja-se por exemplo o lavar das mãos no primeiro verso, que nos recorda o ritual purificador de muitas religiões, mas ao mesmo tempo o episódio bíblico de Pilatos, que se transformou na melhor representação do alijar de culpas quando se quer fugir à responsabilidade.
Neste poema, uma leitura do primeiro verso isoladamente parece referir-se a este segundo significado, mas a leitura dos versos restantes aponta para o rito de purificação — e é nesta indecisão de interpretação que se joga um dos prazeres da poesia.

Esta redução da informação ao mínimo, que cria ambiguidades e polissemias, é o segundo aspeto que aprecio num poema. Essa capacidade de intensificar o imaginário do sujeito poético num veículo linguístico condensado, que pode ser curtíssimo e aparentemente banal, como acontece por exemplo com os haicais. A arte da poesia é uma arte de depuração, em que se descarna o poema até ao tutano, até sobrar apenas o suficiente para permitir o devaneio do leitor.
O poema em análise é um bom exemplo disso: a sua curta dimensão articula-se com a imagem do "eu", concentrado no seu olhar enquanto meio privilegiado para acesso à realidade poética. Os nomes escolhidos para designar o universo em que se move são aparentemente simples, mas tão fortes que prescindem dos adjetivos, que têm um papel muito secundário no poema. A precisão é um dos segredos — como acontece no poema que, por exemplo, utiliza "águia" e "condor", em vez de simplesmente "ave" ou "pássaro".

A propósito do vocabulário, acrescento um terceiro aspeto, que é a necessidade de equilíbrio entre o invulgar e o que é simples ou comum. A riqueza do texto é importante, atrai-nos para a leitura, mas é preciso alguma contenção. Andar à cata de significados no dicionário ou na enciclopédia verso-sim-verso-sim, para além de cansativo, anestesia o efeito de surpresa no leitor, transformando o poema numa mera exibição de erudição. O mesmo em relação a termos que se tornaram lugares-comuns da poesia: palavras como "silêncio", "madrugada", "sonho", "violinos"… podem perder todo o seu fulgor se forem atiradas para os versos sem um contexto imprevisto que as reabilite e as "faça brilhar".
Por exemplo, no poema de Beça, as "lágrimas" deixam de ser uma mera marca de tristeza, a partir do momento em que se envolvem na extração de um dos seus elementos (o sal) e transformam-se em simples água, o elemento primordial mais forte neste poema.

O quarto aspeto que aprecio num poema está relacionado com outro tipo de equilíbrio, na representação de sentimentos. Todos sabemos que emoções fortes não são sinónimo de boa poesia. É aliás um dos maiores dramas do poeta — sentir intensamente algo e não conseguir transpor a sua experiência para as palavras. Uma coisa é certa: a solução raramente passa por uma poesia confessional. Nesse caso, enquanto leitor, posso até sentir respeito e empatia para com os dramas individuais do poeta, mas a experiência estética é praticamente nula.
O mesmo acontece com os poemas em que o "eu" se queixa de não conseguir, de estar aquém, de não ser um verdadeiro poeta... que normalmente são uma deixa para comentários de solidariedade. Pelo contrário, aprecio quem aceita as suas limitações e arrisca, como um chefe de cozinha que combina sensações doces, com ácidas e salgadas, lutando contra a mediocridade dos pratos de sabor intenso, mas enjoativos à primeira trincadela.
No poema do Rogério, há sentimentos fortes — contradições, desorientação, erros, arrependimento, amargura — mas esses sentimentos não nos são lançados à cara: são sugeridos, de forma subtil, por antíteses ("verde ma'duro"), por enumerações (toda a quarta estrofe), por símbolos ("neoplasia"), quer de forma séria, quer de forma sarcástica (como quando vitupera o "vício maldito" de "olhar").

Claro que alguns leitores se sentem melindrados por textos que não compreendem à primeira. Acham talvez que o autor está a ser propositadamente hermético para mostrar distanciação cultural em relação aos não iniciados em poesia. No meu caso, leio poesia não para compreender alguma coisa, mas para me desorientar, para me libertar da realidade convencional e vaguear por um mundo novo que desconheço. As sensações de estranhamento, de absurdo, de falta de lógica são o quinto aspeto da poesia que gostaria de salientar como algo que aprecio. O poema não é uma adivinha à espera de que eu descubra uma solução. A minha participação na criação é a de alguém que aceita que não há um sentido pré-existente no poema e que, por isso, não espera nada para além de se abandonar ao texto, ao jeito de um veraneante que flutua no mar enquanto isso lhe dá prazer, desfrutando do contacto da água na pele e contemplando os reflexos da luz nas ondas.
É por isso que, no poema de Rogério Beça, podem existir truísmos como "sujar as mãos de sujo" ou o "costume de olhar", que não nos impelem a "matar a charada", simplesmente nos transportam à autenticidade das coisas, na sua banalidade e redundância, como se voltássemos à infância, ao tempo da surpresa e descoberta constantes.

Este estranhamento puro que a poesia nos traz não quer dizer que os poemas sejam constituídos apenas por imagens aleatórias, justapostas umas às outras. Mesmo quando os versos nos são oferecidos não sabemos por quem (como dizia Daniel Faria), deve haver momentos de intervenção consciente do autor, caso contrário, o poema pode transformar-se numa espécie de papel de parede ou numa música de elevador, que são agradáveis e decorativos, nada mais. Tem de se sentir, no texto, um equilíbrio (novamente esta palavra) entre o consciente e o inconsciente, entre a espontaneidade e a lucidez — eis a sexta característica que é importante para mim num texto.
Um dos sinais desse equilíbrio é a existência daquilo a que chamamos a estrutura, ou seja, a forma como as ideias e as palavras se combinam entre si. Por exemplo, neste poema, não será por acaso que, a um momento inicial de limpeza que já referimos, se suceda o oposto, o sujar-se: à purificação e à antecipação inicial, segue-se a atividade caótica da criação, dominada pela dúvida e pelos erros. Se o título do poema apresenta uma figura transformada em sal, não será por acaso que o texto termina com essa palavra. Já agora, talvez não seja também coincidência que este elemento esteja presente no título daquela que é, para mim, a "magnum opus" de Eugénio de Andrade, "O sal da língua", sabendo eu que este é um dos escritores preferidos de Rogério Beça.

Sétima característica: ritmo e musicalidade. Não dou grande valor a poemas que apenas se podem chamar assim por causa da versificação, mas considero importante a sonoridade do texto. Há poetas que são virtuosos na técnica formal de construção poética, que se nota que estudaram e que têm a capacidade de utilizar os recursos que séculos de tradição nos legaram como herança. Estas competências não são inúteis, mas não me atraem só por si — até podem ser distrativas se não existirem em consonância com as ideias que veiculam. A métrica, a rima, as cesuras, as aliterações, os jogos de palavras, todos esses elementos, quando ao serviço de um corpo de significados, dão intensidade ao objeto-poema.
Em "a ex-mulher de Lot", escuto com prazer essa sonoridade, na alternância entre versos longos e outros curtos (às vezes só com um verbo), no jogo de palavras "esculpo" / "desculpo", no quiasmo de "olhar para trás" / "trazido pelo costume de olhar", nas assonâncias em "a", "u" e "i" etc.

Chego assim à última característica que valorizo em poesia. Ainda tentei que fossem dez, pela harmonia que este número implica, mas pareceu-me que seria forçado estar a acrescentar por acrescentar. Fico à espera de contributos para chegar a esse número :) Assim sendo, a oitava "regra" da poesia seria quebrar todas as regras. Não é uma ideia original minha e peço desculpa por não saber situar onde a li, apesar de ser fundamental para mim.
Não tenho fundamentalismos enquanto leitor, portanto, acontece frequentemente que encontro poemas em que uma ou mais destas características não existem e que, apesar disso, têm todo o poder encantatório que procuro neste tipo de textos. Talvez seja essa a primeira essência da poesia — o encantamento, esse abandono a algo que nos domina sem sabermos porquê.
O poeta Vasco Gato exprime isso tão bem: "se um poema não tomou de assalto um homem, das duas uma: ou não era um poema, ou não era um homem".

Criado em: 23/8/2023 17:16
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Re: O Poema Perfeito
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
.
Já agora: se quiserem tirar uma hora da vossa vida para ouvirem falar de poesia, um dos meus poetas preferidos, chamado João Luís Barreto Guimarães, esteve há dias na "Grande Entrevista" da RTP (está disponível na RTP Play):

https://www.rtp.pt/play/p11147/grande-entrevista

Ouçam o que ele diz sobre a surpresa na poesia, sobre a sua sonoridade, sobre a forma como se condensam as ideias nesta forma de escrita, sobre a inspiração etc.

E ouçam o longo silêncio deste poeta quando lhe perguntam se é preciso aprender a ler poesia...


Criado em: 2/9/2023 22:15
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Re: O Poema Perfeito/ benjamin/R.B
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15/2/2007 12:46
De Porto
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olá aos dois.

começo por dizer, sem saber muito bem o que vou dizer,mas vou deixar correr a pena, ou melhor, neste caso, deixar correr o teclado.

foram cerca 60` mais que produtivos, esta "grande entrevista" que partilhaste, não assisti. raramente, muito muito raramente vejo TV
mas, voltemos ao que interessa,volto... dos 60`minutos que sem perda de tempo, ganhei tempo , conhecimento e validei tantas coisas que só nós sabemos existirem e afinal não se está só. e dito por alguém como é o entrevistado e o entrevistador que tem um "papel" crucial em toda a entrevista.
posto isto..." o Poema Perfeito"
em busca do poema perfeito... o universo da poesia é vasto e diversificado, abriga uma miríade de estilos, temas e vozes. até aqui nada de novo, sabemos isso enquanto autores.

enquanto leitores, (na minha opinião) não há poetas, autores se não forem leitores, não opinarem, comentarem, validarem...
serem leitores ávidos é preciso.
deparo.me muitas vezes com poemas que me tocam profundamente, que me fazem questionar, se bem que nem sempre sei porque acontece essa alteração de estados : anímico/fisiologico que me fazem dizer: "perfeito", sem no entanto fazer análises cuidadosas e interpretações profundas,buscar segredos do processo criativo, é só numa....deixar fluir. comparo com um número de magia, se estivermos atentos ao processo como acontece, perdemos o resultado, a magia.
no entanto, uma das facetas da poesia é a sua capacidade, como ela mesma é e só pode ser a meu ver, transmitir mensagens intrínsecas e únicas,cada escolha de metáforas, cada escolha de ritmos e métrica contêm a sua riqueza de significado.
quando um poema é analisado minuciosamente, como tu benjamin, o fazes,e partilhas, é como se estivéssemos a explorar todo um universo, cada palavra, cada verso, cada fragmento da intencionalidade do autor, do eu.poético, suas paixões, suas dores, suas alegrias, seu estilo e aí, consigo vislumbrar o que pode se um" poema perfeito"
a interpretação do leitor é peça crucial, traz consigo sua bagagem, crenças, emoções e conhecimento, e é por meio dessa lente pessoal que o poema é devidamente apreciado. para mim não basta ficar pelo gosto porque gosto . possivemente fica.se por aí porque não se consegue fazer mais, é mais fácil e sempre mais agradável e sai sempre bem. (não podemos esquecer, Luso.poemas é uma rede social )e como tal...transcender barreiras e sempre à procura da tal onda, do tal poema perfeito , que para mim é....aquele momento em que o autor e o leitor atingem a plenitude na autenticidade....e sim, há poemas perfeitos e outros hão de vir.

atenciosamente
HC

Criado em: 3/9/2023 13:08
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Re: O Poema Perfeito
Membro de honra
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4/9/2022 13:38
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Agora que acabei de ver a entrevista e com leitura dirigida pelos poetas com um eu concordo, no início da entrevista parecia meio complicada para o poeta e depois ele ficou tão confortável que deixou até os telespectadores com vontade de continuar, já sobre a ensinar a ler poemas vindo de mim é como imaginar o dedo indicador no meio da leitura.
Houve muitos destaques, mas no final uma questão filosófica, com minha compreensão seria a vida um navio e no final mesmo sendo o mesmo comandante ela pode ser a mesma no fim; penso que a vida não está totalmente no nosso controle.
Com a dica dele, o do primeiro verso e vou pegar suas palavras e fazer um poema. Abraços, foi bom terminar o domingo com essa entrevista.

Criado em: 3/9/2023 21:45
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Maria Gabriela


A alma é tingida com a cor de seus pensamentos. (Marco Aurélio, meditação)
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O Poema Perfeito p/ HC e GabrielaM
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
.
Graças à HorrorisCausa e à GabrielaMaria, encontrei as duas características que me faltavam na lista :)

1) Desassossego e procura -- A poesia é o lugar privilegiado para os insatisfeitos com os limites da realidade e da linguagem, que andam em busca de algo que não sabem exatamente o que é. O poema é o mapa desse vaguear.

2) Transformação interior -- Ao transformar a realidade e a linguagem, o poeta transforma-se a si mesmo. A busca de novas soluções é a busca de um si-mesmo novo. Os meus poemas preferidos são aqueles em que se nota essa mudança.

Obrigado às duas pelos comentários (no caso da Gabriela, agradeço duas vezes por causa do texto que deixou na sua página).

Criado em: 6/9/2023 8:13
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