Comentário a quatro poemas de Absalao
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8

no delírio azul
das madrugadas
bebo o sangue último
das estrelas

e vejo o teu nome
renascer
nas partituras
do tempo futuro
- aurora

-----------------------------

9

nas vísceras
do chão

plumas dispersas

eterno idioma
do caos

-----------------------------

10

tenho imensos vácuos
no peito

nos pulmões
albergo a vertical ousadia
das aves

sou o grito
da nuvem talhando
seu último voo

-----------------------------

11

sugo com a língua
o fogo líquido
que te habita a ilha

em deleite
somos o verbo
que bebe a voz
acesa das pétalas

o enigma
que cavalga
as auréolas das nuvens

-----------------------------


Percurso de leitura nº 22 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Absalao é o nome do utilizador Fernando Absalão Chaúque, poeta moçambicano que faz dez anos que nos acompanha no Luso-Poemas. Publicou apenas doze poemas, mas todos eles valem bem a pena.
Este “professor, escritor e blogger” tem, nas informações de contato, o endereço de um site designado “Tenacidade das Palavras”, em que publica textos seus e de outros escritores de Moçambique. O link é o seguinte, caso desejem fazer uma visita: http://tenacidadedaspalavras.blogspot.com

O Luso-Poemas é um espaço que tem dado voz a muitos poetas portugueses e brasileiros, mas efetivamente não temos encontrado por aqui o mesmo número de poetas africanos ou de outras paragens, como Timor. É pena, pois ganhamos todos muitíssimo com o conhecimento da diversidade de vozes do universo poético lusófono.

Esta introdução não quer dizer que Absalao seja propriamente um poeta muito marcado por uma identidade africana. Não veremos por aqui o exotismo que — de forma superficial, temos de admitir — frequentemente associamos ao continente africano.
Pelo contrário, há nestes textos algo de “atópico”, não identificado com um lugar em específico, mas revelador da experiência humana universal. Basta verificar que qualquer um destes poemas poderia ser traduzido para uma outra língua sem perder muito do seu poder expressivo.

Os poemas que selecionámos para comentar são, na minha opinião, um bom retrato da sua personalidade poética: discreta, despretensiosa, contida na sua emotividade, mas com um encanto e um mistério que conquistam à primeira leitura.
Os títulos são um bom exemplo deste caráter comedido do poeta: os textos são identificados por meros números, como se os versos se sucedessem naturalmente uns aos outros, sem a necessidade de algo que lhes distinga a temática.

Até na forma, esta poesia é modesta: os poemas são normalmente breves, divididos em estrofes de um a cinco versos, de métrica variável mas também curta, sem rima. Quase que nos permite uma leitura global à primeira visão, ganhando muito, obviamente, em termos de fruição, com múltiplas leituras em diversas direções, parando aqui e ali para contemplar um pormenor e vê-lo depois no seu conjunto.

Selecionei quatro poemas, todos publicados neste ano de 2023.

Para começar, destacaria um lado que, à falta de melhor palavra, chamaríamos “etéreo”, pelas referências visuais ao “delírio azul / das madrugadas”, à “aurora”, às “estrelas”, às “plumas” e às “aves”, bem como às “nuvens” em “auréola” — um fundo subtil, tranquilo, natural, quase impercetível, para enquadrar a presença do “eu”, que traz um lado disruptivo de interferência nesta moldura quase imaterial.

De facto, a característica que, em segundo lugar, me surge com maior nitidez é a corporalidade da presença do “eu”. Quero com este termo designar o recurso a um campo lexical diretamente ligado à experiência fisiológica, com palavras como “sangue”, “vísceras”, “pulmões”, “língua”. Todas elas remetem para a aproximação da realidade psíquica do “eu” à matéria orgânica de que é feito, como se deixasse penetrar o mundo que o rodeia no invólucro que é o seu corpo, suporte da vida que reconhece dentro e fora de si.

Ocorre então uma espécie de osmose do sujeito poético com a natureza — as madrugadas são vividas em “delírio”; as estrelas interessam pelo “sangue último” que o sujeito sorve; das aves, diz que “nos pulmões / albergo a vertical ousadia”; quanto à nuvem, ele é o “grito” do seu ”último voo”. Há uma faceta perversa de provocação, de afronta à harmonia, de risco de perda, que ensombra e, ao mesmo tempo, vivifica este aparente madrigal.

Por breves instantes, aparece um “tu” — alguém ou alguma coisa que concede esperança, que permite a renovação ao “eterno idioma / do caos” pronunciado pelo “eu”: note-se que, no poema 8, o “nome” desse destinatário é que permite “renascer / nas partituras / do tempo futuro”.
Esse “tu” também é um espaço de sensualidade: no poema 11, constitui-se como o “fogo líquido” de uma “ilha” — arquétipo universal do paraíso perdido — onde se “bebe a voz / acesa das pétalas” e os dois indivíduos se transformam num plural (“nós”), convertendo-se simultaneamente em palavras (“somos o verbo”).

Termino aqui esta breve resenha, com o desejo pessoal de que surjam por aqui mais poetas como Absalao, que nos permitam conhecer um pouco melhor a diversidade da poesia que se escreve nos países de expressão portuguesa, que no fundo é uma das principais razões de ser do Luso-Poemas.

Criado em: 2/11/2023 21:24
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Re: Comentário a quatro poemas de Absalao
Administrador
Membro desde:
15/2/2007 12:46
De Porto
Mensagens: 3598
olá Absalao/bejamim/todos

levar o Luso Poemas as outras latitudes/longitudes, trazer outras latitudes/longitudes para o Luso Poemas ganhariamos todos muitíssimo , como diz no comentário /análise. faço desta afirmação minha também.
venham mais...

do autor, Absalao, fiquei curiosa de conhecer mais da sua escrita
obrigada pela possibilidade de o fazer

atenciosamente
HC

Criado em: 5/11/2023 9:30
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