Comentário a "Oitenta anos", de Beatriz |
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2/10/2021 14:11 Mensagens:
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"Oitenta anos", de Beatriz Oitenta anos no meu pescoço nu concebido por vós raposa-do-ártico belo animal híbrido e cru em hibernação traçada de tule anos sem segundos matemáticos ----------------------------- Percurso de leitura nº 27 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link) Costumo prestar mais atenção a textos que fogem dos temas recorrentes da poesia. Amor, morte, destino, revolta, melancolia... continuam a inspirar muito do que lemos por aqui e não só; são dignos e merecedores de reflexão, com certeza, mas acabam, muitas vezes, por apenas dar mais uma demão de tinta quando a anterior ainda está a secar. No caso do poema de Beatrix, temos dez versos muito originais, construídos de uma ambiguidade real, não aleatória, e limpos de qualquer elemento supérfluo, para irem direto ao centro da metáfora buscar alimento para subsistirem sem mais. Aliás, esta poderia ser uma linha de leitura entre as múltiplas que "Oitenta anos" nos oferece: um instantâneo sobre a sobrevivência poética para além dos adornos e para além da procura de uma resposta sentimental dos leitores. Aliás, o número de leituras e de "pontos" à data deste comentário mostra bem a recetividade geral a poemas como este, que apresentam um "virar de costas sedutor" ao leitor -- para usar o título do belíssimo ensaio de Frederico Pedreira, acerca da predominância da teatralidade sobre a intimidade na poesia que vai tendo mais popularidade entre o público. O texto de Beatrix fala-me de sobrevivência e da relatividade do tempo, sujeito a acelerações, a travagens e a derrapagens como se fosse um veículo fora de controlo. Mas vamos devagar, que o texto merece ser saboreado com calma. O "eu" poético surge-nos, porventura, como filhote da raposa-do-ártico. Repare-se, a este propósito, na expressão "concebido por vós", que parece reminiscente da jaculatória "Ó Maria, concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós", como se houvesse algo de místico na crueza deste ser. Não por acaso, o adjetivo "cru" aparece acompanhado de "híbrido", que poderia muito bem ser uma referência à união hipostática da teologia cristã. Não fiquem impressionados: estava a pesquisar sobre a essência divina e humana de Cristo e, por uma casualidade, apareceu-me este conceito. Nesta sequência, fica bem um momento National Geographic: com o nome científico "Vulpes lagopus", a raposa-do-ártico é um animal que obviamente está preparado para as asperezas do tempo gelado, com uma pele que ajuda à camuflagem para fugir aos predadores e que se satisfaz com tudo o que encontra: sejam roedores, insetos, fruta e até fezes. Hiberna e, num território tão agreste, dura pouco mais de um ano. A voz do poema, "traçada de tule" como virgem pré-nubente, adquire oitenta anos no seu "pescoço nu", sem colares ou coleiras que a aprisionem. Os "anos sem / segundos matemáticos" determinam esse envelhecimento precoce, que lhe permite sobreviver e que lhe dá uma beleza dúplice: entre a imaturidade e a experiência, entre a ingenuidade e a sabedoria, entre o instante e a eternidade. "Num' hora acho mil anos, e é de jeito / Que em mil anos não posso achar um' hora" (aqui, vai um piscar de olhos a Camões e ao nosso Alemtagus). Uma última observação vai para a única rima do poema, entre os adjetivos "nu" e "cru", como que a afirmar que a poesia é essa realidade nua e crua, dissimulada sob o tule da metáfora, que permite sonhar com o infinito e com a sobrevivência a mil noites de despedida e de regresso – presente no título, já agora, da banda sonora deste poema, réplica roubada a "Romeu e Julieta". Afinal de contas, chego à conclusão que o amor não anda assim tão longe daqui...
Criado em: Hoje 16:07:50
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