Comentário a "lembranças de menina", de rosafogo
Administrador
Membro desde:
2/10/2021 14:11
Mensagens: 627
Veja a transcrição do poema no final deste comentário ou aceda aqui ao texto publicado originalmente pelo autor.

Percurso de leitura nº 28 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link).

Há poetas e poemas que nos impressionam, não tanto pelos experimentalismos formais e pela originalidade dos temas, mas pela discrição da sua composição, pela maturidade da sua voz, e pela segurança da sua sinceridade, qualidades que apenas se conquistam com o tempo e com a experiência, e que só se exprimem devidamente naquele ponto em que já não se precisa de provar nada a ninguém.

É o caso de rosafogo que, com este "lembranças de menina", nos apresenta memórias de um "eu", que retratam a infância no universo das pequenas aldeias tradicionais portuguesas, envoltas num ambiente de nostalgia e saudade. As recordações começam com a referência à madrugada e terminam com a noite, esse momento de serenidade e de murmúrios em que o "eu" sente que lhe são devolvidos os sentidos.

E como os sentidos são importantes neste poema!
Temos fortes imagens visuais, como as padeiras a trabalhar ainda o sol não nasceu, as praças desertas, as crianças a jogarem com o pião, os namoros na fonte, os homens (possivelmente nas tascas) a jogar matraquilhos...
Conseguimos escutar interiormente a linguagem dos galos, dos cães, das rãs, que se combina com o canto dos pássaros, os "gemidos do moinho" e o "sino da igreja", a que se sobrepõe a presença do "eu" e do "eco" dos seus "passos na ponte" (bela metáfora para a passagem do tempo da infância para a idade adulta).
Há finalmente um pequeno apontamento olfativo, "da cozinha [de onde] ainda me vem o cheiro da sopa", um daqueles aromas familiares que tem o condão de nos transportar de imediato a uma outra era, terna e reconfortante.

Juntos, os dados sensoriais compõem um retrato vívido do mundo desta criança, marcado também pela passagem das estações do ano: a primavera presente nas flores que despontam; o verão, nas cerejas colocadas nas orelhas; o inverno, no "musgo do presépio". Os ciclos da natureza têm um papel muito importante também em termos simbólicos, como marca desse fluir das existências, frágeis e passageiras, obedecendo às leis neutras e inexoráveis do destino.

Já agora, uma anotação técnica que pode parecer deslocada, mas que está relacionada com o que tenho vindo a dizer. Há muitos anos, li um manual de escrita criativa que muito me influenciou (Writing Down The Bones, de Natalie Goldberg), que apontava – como característica fundamental a desenvolver num novo escritor – a procura incessante da propriedade das palavras. Ou seja, de forma mais simples, recorrendo a um exemplo, não utilizar o verbo "fazer" se o contexto aponta para ideias mais concretas, como "delinear", "construir" ou "confecionar". Mais um exemplo: não usar a palavra "livro" se pudermos especificar que se trata de um "dicionário", de um "romance" ou de um "alfarrábio".
Trata-se de um conselho que foi naturalmente intuído por rosafogo, que não fala de "flores", mas delicia-nos com a variedade de "goivos", "lilases", "urzes" e "junquilhos", o que permite um enriquecimento suplementar da experiência sensitiva do leitor relativamente à realidade retratada.

O vocabulário apropriado é, de facto, uma das formas mais eficazes de criar um ambiente verdadeiramente distintivo no poema. O vocabulário também pode ser importante na recriação do processo de transformação que o tempo opera nas personagens e nos locais que habitámos (e que nos habitam, também), trazendo de volta palavras que se vão esquecendo e passando a arcaísmos.
No caso deste poema, vocábulos como "alcatruz", "açude" ou até o verbo "almejar" são um condimento especial para falar de um mundo e de uma língua que ainda resiste no universo popular português, mas que vai desaparecendo do imaginário das gerações mais novas.

Aliás, a este propósito, talvez possamos interpretar o "tu", que aparece por instantes na antepenúltima estrofe, como esse leitor que não pôde presenciar o passado e que, por isso, talvez não seja capaz de se comover com as imagens pungentes da morte do "sol no horizonte", das aves que "já não páram aqui", voando "para parte incerta" ou – a minha preferida – a de que "já só restam janelas fechadas, nem uma fresta", sugerindo a inevitabilidade da passagem do tempo e da mudança.

Em termos formais, o texto é de uma musicalidade extraordinária, combinando versos de métrica e ritmo diferentes, de modo a soarem sem quebras prosódicas que perturbem a melodia global do poema.
Outro prazer a descobrir por aqui é a rima. Quem escreve sabe que, por vezes, um esquema rimático é construído à custa de algum artificialismo, pela seleção de palavras não propriamente relevantes para o texto, mas que são necessárias pela sua terminação. Pelo contrário, neste caso, as rimas fazem-se de palavras essenciais ao poema (apreciei em especial as combinações "lilases" / "rapazes" e ainda mais "junquilhos" e "matraquilhos").

Em suma, trata-se de um texto com que me identifiquei bastante – não propriamente pelo imaginário rural com o qual eu, menino de cidade, só lidava nas férias na aldeia dos meus avós – mas sobretudo pela sensação de criança fechada num corpo de adulto, surpreendido pela efemeridade da vida, mas descobrindo com o envelhecimento, nos refúgios da memória, que "cada dia é uma vida inteira", admirável expressão de Goethe com que rosafogo costuma rubricar os seus textos.

........................................

"lembranças de menina", de rosafogo

já não ouço o galo de madrugada
nem o cão a ladrar ao vento
já não colho fruta nem flor plantada
mas trago ainda os gemidos do moinho
no pensamento, e as mulheres fazendo o pão
com a farinha e fermento

já não penduro cerejas nas orelhas
nem procuro passarinhos novos nas telhas
já não ouço o barulho dos alcatruzes
nem apanho goivos liláses
nem musgo do presépio, entre as urzes
nem brinco com o pião como os rapazes

já não olho os peixes no rio
por entre os junquilhos
nem ouço o eco dos meus passos
na ponte,
morreram os homens que jogavam matraquilhos
enquanto morria o sol no horizonte...

há sombras pelos campos e a praça está deserta, a fonte sossegada
já não há moças namorando à noite pela calada
aves já não páram aqui, partiram para parte incerta
já só restam janelas fechadas, nem uma fresta!
ninguém por elas espreita, apagou-se a vida
nada mais resta...

na aldeia agora, só toca o sino da igreja
a lembrar quem se foi
nada a minha fé almeja
e a saudade é muita, e dói!

ausentes estão minhas mãos e braços
e de todos que partiram, perdi os abraços
no baú que herdei, está minha velha roupa
e da cozinha ainda me vem o cheiro da sopa
o tempo tudo corrói, tudo traça
só a aldeia continua cheia de graça

pretendo manter-me viva com esta paixão
dentro de mim, escrevo-te este extenso poema
olhando o firmamento e tudo perdura
até a saudade sem fim...no coração!

perco-me por entre os laranjais
e ouço as rãs, na memória os rumores
e o piso escorregadio lembro por demais
do açude, e da roupa branca no sabão,
toco flores, num avanço e recuo doce
e de novo a saudade no coração
lembrando a menina, como se ainda o fosse.

e aquele pássaro ainda me canta aos ouvidos
e à noite o luar devolve-me os sentidos
ouço um murmurar que me traz tranquilidade
o murmurar duma infinita saudade...

Criado em: Ontem 22:47:58
Transferir o post para outras aplicações Transferir


Re: Comentário a "lembranças de menina", de rosafogo

Membro desde:
28/7/2009 9:35
De
Mensagens: 11116
Estimado Poeta Benjamim

Cada novo dia nos proporciona uma surpresa, uma alegria, uma satisfação, e hoje sem dúvida o amigo tocou meu coração.
Li todas as suas valiosas palavras, acerca deste meu poema, com a emoção duma criança ao receber um presente, fiquei feliz e emocionada, feliz por saber que o poema também lhe tocou.
Quero que saiba que a minha gratidão é imensa, e que suas palavras vieram fazer diferença no meu dia, e incentivam-me a continuar partilhar, enquanto Deus me permitir


Que a sua generosidade, volte em forma de felicidade.

Um abraço
desejo bom domingo





Criado em: Hoje 8:15:12
_________________
Na plenitude da felicidade, cada dia é uma vida inteira.
Johann Wolfgang Von Goethe

Transferir o post para outras aplicações Transferir







Links patrocinados