Contos : 

O desenho no prato.

 
O Desenho no prato.
A noite de Natal é uma noite especial.
Como tantas noites de milhares de pessoas, as mães em geral preocupam-se com os afazeres das cozinhas e como tornar maravilhosa a noite de Natal.
Já ouvi tantas e tantas conversas e uma mão cheia ficou registada na minha cabeça. Era outros tempos e o que vou contar já tem uma certa idade.
Sou uma pessoa curiosa e se puder apanho uma pequenina conversa tal aconteceu que um dia estava no escritório e a empregada de limpeza, a D.Maria.
D. Maria é muito trabalhadora, limpa e assiada, nota-se bem que a sua educação do mundo dos pobres é de gente humilde. Gosta de conversar, desabafa como uma criança e lá fundo o seu coração terno é maravilhoso demais. É o que eu sinto, uma mãe extremosa. Quando fazemos anos oferece um pano bordado entre outras coisas, na páscoa trás amêndoas. De manhã quando a encontro na máquina do café bebendo o seu cafézinho com leite entramos em conversas, falamos do essencial do dia de ontem, de futebol, roupas etc…
A D. Maria veste-se bem, como mulher gosta de andar arranjada. À saída da empresa ela passa pelo corredor que dá acesso à porta de entrada passando pelo escritório, gosta de percorrer esse espaço e é aí que eu reparo o quanto vaidosa ela é. De ocúlos escuros pousados na cabeça olha em frente em direcção hà porta, e lá vai ela.
E como estamos a dois meses do Natal no outro dia não resisti em perguntar-lhe como era o Natal em sua casa.
- Oh menina, agora é bom - olhou para o chão.
Fiquei emocionada com a conversa e decidi então desta pequena história escrever para quem quem saber o conteúdo e usei um pouco mais a minha imaginação..
Então aqui vai..
Numa certa casa vivia uma família pobre, apenas o pai trabalhava e a mãe cuidava da casa e dos filhos.
Ora os filhos vão crescendo, as vezes a sonhar e outros vivem mesmo a realidade. Os filhos são oito mais o pai e a mãe, todos com idades crescentes, o mais velho com 12 e o mais pequenio recém nascido. Uma família feliz.
As roupas serviam para passar de uns para os outros, claro quanto às raparigas, só havia duas. Essas tinham alguma sorte as diferenças de idade eram de um ano para o outro e não se notava a diferença na moda..as raparigas praticamente usam sempre saias, meias e camisas brancas.
Realmente eram outros tempos. Hoje em dia tudo serve para as raparigas usarem, então as cores são diversas.
O pai era alto, moreno. Quase sempre com barba aparada, um sorriso aberto, satisfeito, contente. Quando alcançava a porta de casa a felicidade era suprema, todos por ordem aguardavam o beijo, aquele beijo saboroso, cheio de saudade.
Saudade, sim.
O pai trabalhava numa quinta, era jardineiro, agricultor, pintor, um faz quase tudo. Tudo o que vinha hà rede era peixe. Afinal a família é grande.
Mas o sorriso aberto nem sempre estava presente, especialmente no dia de Natal.
A mãe, que mais podia ela ser senão a mãe querida, extremosa, mãe galinha.
Sempre a ensinar a boa educação, humilde, de chinelos no pé no Verão e no Inverno as saias quase tapavam os buracos das botas, mas era feliz.
Na escola iam bem, inteligentes crentes num futuro diferente ao do pai, o mais velho já dizia:
- Quando for mais velho vou sair desta terra..Vou para Lisboa!
- Quando fores mais velho, dizia o do meio... Vais viajar por este mundo fora?
- E volto cheio..nos bolsos hei-de trazer notas grandes.
- E dás-me uma? Dizia o pequeno Simão.
- Ou duas..Pelo sim ..pelo não.
Eram os seus sonhos. Não era serem ricos, não.
Mas o mais velho que já entendia um pouco da vida, as vezes comentava:
- O importante não é ser rico! O importante é não ser pobre...
- E como se deixa de ser pobre? O que é ser rico? Perguntava a joana.
- Não sei..por isso é que toda a gente na escola diz, que o pai do Roberto trabalha lá e quando vem, tira duas notas grandes.
- E o que faz o pai do Roberto?
- Não sei...
- O nosso pai não traz notas, traz couves..
- E batatas..ovos etc..
Quando chegava a noite mais esperada do ano, aconchegados nos seus casacos à volta da lareira, as mãozitas frias e com o coração quente, já sabiam que era o dia mais divertido. Tudo servia para fazer chacota.
- Este ano é que vai ser..rindo dele próprio o mais velho, o João.
- Porque te ris? Pareces um tolo..vê lá se tens maneiras! Dizia a mãe.
- Ò Mãe..deixa-os sonhar.
- Sonhar?
A pequenita da joana nada entendia das conversas, apenas também ria. O que ela não sabia era das histórias contadas à mesa.
A hora chegou, o pai entrou.
Sentaram-se à mesa. Aguardavam a permissão para começar a comer.
O sorriso aberto do pai...o olhar atento da mãe.
Na mesa bem posta, uma postura elegante e educada.
O prato, os copos, os guarfos, os guardanapos de pano.
A toalha especial, uns pequenos papos de entrada.
O prato no meio da mesa cheias de batatas, couves, ovos.
Ao lado os alhos e o azeite.
- O bacalhau pai?
- Come joaninha, come.
E o joão ri-se.
- Come, vai comendo que o bacalhau já aparece..
- Está no fundo do prato, dizia o joão.
- E demora muito... a lá chegar?
- Não, mas para isso tens de comer..
- As batatas, as couves, os ovos...
- E no fim...
- Sim, querida..no fundo do prato.
- No fundo do prato, já o vejo.
- Vês? Pergunta o joão.
- É um desenho. Pai...
E no fundo do prato,
desenhado e pintado à mão,
o bacalhau desejado,
foi encontrado.
Conversas à mesa,
soltam-se risos,
sonhos
e muita imaginação.
Sonhos, talvez sim, talvez não.
- Comam tudo!
As batatas,
as couves,
os ovos,
ponham o alho, mergulhem no azeite.
Antes que a noite se deite!
- Mas o bacalhau, pai? Onde está?
- Não há dinheiro.
- Mas..
Seus olhos tristonhos,
risos e sonhos,
estavam presentes.
- Usa a tua imaginação! Dizia o João.
- Pois então, foi o que fiz, comi um rabo, saboroso e estou feliz. Comi as batatas, as couves e ovos, o alho e o grande rabo do bacalhau...como comi ontem o bife do talho!


Iolanda Neiva
(muitas vezes falo só para mim,
e escrevo para que alguém me ouça)

 
Autor
iolanda neiva
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/09/2008 21:18  Atualizado: 28/09/2008 21:18
 Re: O desenho no prato.
Gostei desta história. Deves guardá-la para a oferecer nesse dia tão especial a quem saiba entender o que é o Natal.
Eu entendi e gostei muito desta tua prosa bem contada.

Enviado por Tópico
ImprovávelPoeta
Publicado: 28/09/2008 21:22  Atualizado: 28/09/2008 21:22
Super Participativo
Usuário desde: 04/06/2008
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Mensagens: 141
 Re: O desenho no prato.
Esta tua história trouxe-me à memória tempos em que também vivi dificuldades muito parecidas.
E quase sem família.
Já comi sombra de chouriço.