(a súplica do ímpio)


não me mintas mais
nem me desmintas
nem me sopres ao ouvido
(estou todo dorido)
não me cantes versos
nem digas que sou teu
inimigo

não me consumas
fora dos tempos adversos

não me resumas
a uma rima negada
não me embriagues
numa paixão saudada
numa chama rubra
mas logo apagada

não me mortifiques
na esperança senil
(mesmo que a última a morrer)
não sabes já
que o fatigado coração
deixou de correr
e só ao passo da canção
se encosta ao peitoril
(para ver)
e se entretém a entretecer
imagens desfiadas
de um enigma febril
de uma musa gentil

não não me condenes
não me deixes mais
(aqui)
ficar assim a ti preso
sem motivo neste ledo
e instigador ardil

(luares de inverno)


se adormeço
encontro o sonho
do outro lado
da cancela
se desperto
ardem me as mãos
que tentam agarrar
a minha estrela
mas são só nãos
essas relíquias
dançantes
e folhas nuas
são invernias
e caprichos
de sedutoras luas

(invernias enigmáticas e desfolhadas)


já ao frio sou desfolhado
sob o manto da neve branca

tanta tanta tanta

e o meu voo enregelado
e o trinado está tolhido

se ao menos tivesse ninho
com quem repartisse carinho

quebraria este estigma
desvendar se ia o enigma

(longe vão os tempos
das searas)

(vaga mente e voo sobre beiral)


sou um vagabundo
de mim
vagabundeio me
pois
sim
chamo lhe poesia
mas há quem diga
que viu a cotovia
e a ouviu
padejando versos
sobre o vale

e eu sou um pardal

(genética da poética)



em cada poema
renasço
em cada lexema
me faço
em cada semema
também
me retraço

e sou pássaro
voo livre
no ritmo do vento
e no contratempo
eu solto o chilreio
no branco das nuvens
eu me desenfreio

será isto sintoma de um devaneio
ou musa em passeio num falso genoma

(lamento em branco prosaico)



eu só sou a poesia
do papel em branco
sou um mocho
sou um banco
sem o ocupante
onde ninguém se chante

sou a poesia
que nem tem fim
nem principia
não nasce
não morre
dentro de mim

eu sou a poesia
de um lamento só
sem piedade nem dó
sou a folha em branco
a tábua rasa
um carpinteiro sem enxó

(estudo em redondilhas sobre mote de alice luconi)



muitos me condenam
outros veem nisso
apenas esquisso
dos que me desprezam
muitos me condenam

outros veem nisso
todos os meus sonhos
que são enfadonhos
que me sou omisso
muitos me condenam

apenas esquisso
do que nunca fui
nem sequer um ui
muito menos isso
muitos me condenam

dos que me desprezam
não contei nenhum
eu que sou comum
na estória não rezam
muitos me condenam

muitos me condenam
por não ser assim
mais além de mim
p’ra que todos vejam
muitos me condenam



ps - Proposta para o título da coletânea:

lusopoética aplicada
(noves fora nada)
ensaio estético de teoria literária

(soneto questionado)



que é do branco que cinzela o espaço
entre as palavras por dentro da mente
que faz um sonho já velho e que sente
a dor de artrite em que andou o meu passo

que é do som que me fere o ouvido
dito por ti só com meias palavras
e nos sussurros da rima em que lavras
toda a ideia que pões no sentido

que é da cor que tu pintas no ar
e do calor que acendes no lume
visto ao espelho da calma do mar

que é da flor que irradia o perfume
e do poema e de quem (o) escutar
que é de mim que me ardo em queixume

(um poema uma tumba)


morreu
quem lhe acode
quem lhe vestiu
a mortalha
quem a sacode
e lhe põe epitáfio
à cabeceira
da morte
creio
à segunda feira
em nome da sorte
só a maralha

(em pat(h)os de negra estética alcatroada)



e um verso caído
cheio de tarro
negro malcheiroso
esborrachado
pela roda de um pesado
carro

e a língua colada
num beijo mal dado
e eu prostrado na via
muito aquém do meu mísero
estado
longe
além da empatia
de alguém
que é só ninguém

e negra é a roda
desta poesia
e se alguma luz lhe dessem
por enxertia
melhor fora que fosse poda
ou escrita em língua
calada

como negra é a chã estética
como o chão destarte patética