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Comentário a "A escrita também morre quando a matam" - de Valdevinoxis

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6/11/2007 15:11
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Agora mais a sério (não vamos discutir a seriedade da poesia...), como pode morrer a escrita?
Não me compete ter certezas, mas o assunto parece um caso sério (outra vez?!) de filosofia, ou de incerteza existencial que me apeteceu explorar.
O título obedece a esse facto. Quando se mata algo, ele morre.
Esta é uma forma engenhosa de personificação.
Muito simples, parece, mas deste modo o autor coloca a escrita (que é tinta sobre papel, ou pixels em ecrãs, ou onda sonora, entre outras que me esqueço) no mundo dos vivos. Como um peixe, que nasce, cresce, reproduz-se e morre. E vive.
Além disso o título põe a nu um crime. Uma espécie de homicídio da escrita. Um escriticínio (?!).
Seja voluntário ou involuntário, acidental ou premeditado esse crime mereceu um poema composto por duas estrofes de tom acusatório.

A aposta na rima cruzada tem o tom de colocar uma cruz na sepultura da vítima. Além de conceber ao poema melodia e algum ritmo.
Na primeira estrofe é quebrada nos últimos três versos.
Com nove versos, a primeira estrofe apresenta a teimosia e a pureza como culpadas.
Sendo o adjectivo “...rosas...” também um nome, essa subtil ambiguidade diverge-me entre os espinhos (apesar do perfume) e aquele tom desmaiado de vermelho que dá um tom feminino a tudo.
O que embeleza também pode tornar feio. Sendo que o apelo à flexibilidade e à tolerância visível face à forma como se associa a fealdade à supracitada teimosia.
Uma estrofe forte que também nos fala de “...vontades...” e “...verdades...”.
Acho muita graça ao uso do plural na segunda. “verdades” no singular é ilusória. Cada um tem a sua, embora achemos muito conveniente que as várias “...vontades...” coincidam. Desculpem, “...verdades...”.
Porque, no fundo para se manter viva, a escrita deve ter vontades e verdades diferentes e não deve ser teimosa nem pura.

A segunda estrofe tem um erotismo qualquer que roça o estranho. Composta por cinco versos como os dedos duma mão, a rima mantém-se idêntica à maior parte da estrofe antecedente, apesar do som final mudar.
Como que nos quisesse dizer que são as várias camadas de roupa que tornam a vida mais atraente, pois o tom pesado mantêm-se.
Gosto dos versos:
“...Que presas a fundas crenças,
Se mostram vestidas de nuas...”
sobretudo da antítese do segundo. Mas também da justificação que o primeiro significa.
Porque, no fundo as crenças, apesar de nos sustentarem enquanto pessoas e nos ajudarem no dia-a-dia, por exemplo a tomar as mais variadas decisões, não nos podem levar para caminhos fundamentalistas, nem à violência física ou psicológica.

Talvez por isso tenha gostado muito deste poema, por ter uma forte moral sem se tornar demasiado moralista.
Seja em “...rimas e as prosas...”.


A escrita também morre quando a matam


Noutras vontades,
Teimosas, teimosas,
Noutras verdades
Tão puras e rosas,
Caíram de fealdade
As rimas e as prosas...
Em formas mortas,
Todas tortas...
Polutas.

Tristes presenças
De letras cruas
Que presas a fundas crenças,
Se mostram vestidas de nuas
Em linhas disformes e tensas.


Criado em: 13/1/2023 9:29
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Comentário a “como são as vossas lágrimas” de Mimus-triurus

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6/11/2007 15:11
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Um homem não chora.
É um preconceito fácil que podia ser ouvido em décadas anteriores. Ainda não estou certo da dimensão do h. Nem das vozes que o prenunciaram. Uma letra muda.
Ironias à parte, é interessante que o título do poema surja em forma de pergunta. O autor parece procurar o diálogo e permitindo, também, ao leitor, a introspeção.

“Como são as vossas lágrimas?”

Se excetuarmos as lágrimas de felicidade e dos atores, que são possíveis e registadas, são geralmente associadas à mágoa, nas mais variadas formas.
Esse confronto, seguindo esta lógica, tem algo de desconforto. Como se nos perguntassem como são as nossas dores. E íntimo.
Serão como um rio, em catadupa? Ou escassas e singulares? Serão quentes, frias, arderão no rosto?
Serão sempre iguais, ou sempre diferentes?
Se não soubermos responder, já terá valido a pena ter sido feita.

Se depois nos afastarmos desse incómodo que nos causa o título, entramos nas sete estrofes de forma muito agradável.

Há no primeiro verso a sugestão de movimento que o “...retrovisor...” sempre me provoca.
A poética entra em acção na utilização da metáfora “...retrovisor do tempo...” como alusão ao recordar.
Nos dois primeiros versos da primeira estrofe aparecem várias referências à visão, no supracitado retrovisor e também no “olho...” e depois no “...observo...”. Na transição do primeiro para o segundo verso há um apuramento da acção. Um convite à atenção.
A atenção tem um objecto que podemos acompanhar em todo o poema.
A “..menina...” , sem nome, é um sujeito poético maior e forte que é caracterizado com fragilidade.
Na primeira estrofe a alusão a magreza é pungente, quer nos “...palitos...” como no “...fininho...”.
Primeira estrofe amarga.
Não que a fragilidade se esfume nas outras.

Na segunda estrofe surge a primeira alusão ao quotidiano do sujeito poético, sem nos livrarmos do tom trágico.
A ligação à anterior mantém-se com o “...vejo-a...” e estabelece uma engraçada tríade (olhar, observar e ver).
“...os olhos em pedra...” e “...a nítida lágrima...” repartem-se entre o leitor, o sujeito poético e a menina, deixando uma doce confusão no ar.
“...Os olhos em pedra...” dão uma certa dureza que parece quase contrária ao acto de chorar, ou lacrimejar se quisermos. Além disso, num só verso o “...[orvalhada]...” há também a ideia de contenção e escassez, apesar da nitidez.
A comparação com “...a erva...” parece-me menos clara, e talvez seja o único ponto fraco.
Um nó na garganta esta estrofe.

Que não se desfaz na seguinte, onde acho que se atinge o ponto alto.
Estranha e macabra “...lancheira...” que leva “...pão com toucinho...”.
Metáforas ricas, um parênteses recto que procura uma ironia sem piada mas muita graça. A descrição duma realidade de violência, triste e deprimente.
Os sorrisos fingidos podem ser como lágrimas.
Uma estrofe com cheiro.

Os meninos em escolas de adultos são uma verdade ainda actual, mas que fez parte da história de inúmeras famílias. Reflexo de famílias carenciadas onde grassa a ignorância e outros tipos de miséria.

As estrofes finais trazem algum alívio à leitura, apesar de se verificar que tal apenas acontece porque o ambiente familiar apagava o fingimento.

No final, o facto do “...olhar.” ser o que persiste, submete a leitura mais uma vez ao título, uma vez por ser pelos olhos que saem as lágrimas.

Então, o que podemos responder?

Tive algumas hesitações na decisão de fazer este comentário. Gosto de ler mais textos do autor antes de arriscar fazê-lo.
Contudo, acho que este primeiro e único poema até esta data, tem qualidade para que me tivesse debruçado sobre ele.
Um tema difícil, uma poética com figuras de estilo variadas e bem construídas. Alguns versos muito bons, sem existirem outros que estraguem a construção.
Espero que o autor nos brinde com outros de semelhante valor.
Ou melhores.

Bela calhandrice...



Como são as vossas lágrimas?


Olho no retrovisor do tempo
E observo aquela menina
Com dois palitos
Segurando
O fininho corpo

Vejo-a
Saindo de casa
Com os olhos em pedra
Não o suficiente
Para a nítida lágrima
Parar de escorrer
[Orvalhada]
Como a erva
Gelada
Na cara

Aquela menina
Todas as manhãs
Levava um soco no estômago
Um pão com toucinho
E sorrisos
[Tão bem ensaiados]
Na lancheira

Aquela menina ia para escola dos adultos não dos meninos

No fim do dia
Chegava a casa
E o telhado desabava

Era
Uma dádiva
Esvaziar o transbordar
De todas as tristezas
[Empilhadas]

Com a idade
Tudo se transformou
Naquela menina
Menos o olhar

Criado em: 16/12/2022 20:03
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Comentário a "Como Estás" de Frágilvocábulo

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6/11/2007 15:11
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O meu amor diz-me que a palavra amor em poesia tem pouca poesia. Vive gasta e enjoa até à erosão.
Eu sigo o seu catecismo, como fiel cordeiro sem guizo, nem badalo.
Eu, um cão-pastor, ou pastor-sem-cão. Ou, talvez, capim.
Quererá ela, ou eu, acabar com os poemas de amor?
Acho que o teu poema dá resposta à pergunta que acabei de fazer, e demonstra o que o meu amor quer com isso dizer.
O amor é tema de conversa, pode caber em todos os dicionários, ser mote de vários romances de cordel, e sem corda avançar por toda a prosa imaginável.
No poema, não.
Ou, não num poema em que o enjoo da palavra não a limite.
A tua primeira estrofe é um assombro.
Tem fantasmas dentro dela, mortos que regressam, na dor e no pensamento, hologramas, espectros.

Quando o “quando...” chega e o “...cheguei-te...” o acompanha, aparece esse amor ímpar no ar, que abdica das quatro letras.
“quando cheguei-te...” já o diz, e segundo o meu amor, não fá-lo-à tão melhor?
Depois, os três versos seguintes surgem, num soco enfiado algures num amargor que dilacera.
Mas a metáfora da “...porta...” não fecha a esperança. Mas este “...não abria...” não surge como bom prenúncio.
Da estrofe seguinte chamou-me a atenção para a palavra “...dúzia...” que, sendo doze por sinónimo, tem o “...dúz-ia...” e este ia não se sabe se vai. Como o “...abria...” acompanhado do "...não...". É como se fosse um advérbio de quantidade no pretérito imperfeito. Em vez de só um algarismo. Já tentei escrever um poema com a “dúzia”, mas nada saiu, muito menos doze.
A referência à “...dúzia de chaves...” já dispensava a “...esperança...”, mas aparece, talvez, um pleonasmo escondido.

O verso maior deste poema surge num jogo de palavras descabido que prima pela beleza, isto é de escritor, de poeta, cito:
“...interessei-me pelo forro do teu olhar...”

O interesse era mais do que notório até então, mas a razão desse interesse é profunda, é metafísica, é das qualidades humanas, mais do que duma aparência que todos vamos a concluir que, depois dos 40, vai à vida dela para os jovens de corpo.
Há muito a dizer sobre olhares, para além destas linhas que decidi escrever.
Olhar é muito menos do que ver. Ver obriga ao processamento do olhar. O olhar é feito com os olhos (as tais janelas da alma). Captamos a luz através da pupila para o nervo óptico, que as transforma em algo que o cérebro define por imagem.
Entre ver e observar, existem depois graus distintos de intensidade.
Dependendo de como se olha podemos ver belo e\ou feio. Mais claro do que outros, ou mais escuro.
O “...forro...”, neste contexto, é uma palavra achada muito feliz. Dou-te mesmo os parabéns, pois é de uma invulgaridade agradável para determinar interior.
O forro não tem necessariamente de ter bom ar. É sobretudo funcional. Geralmente a sua função é aquecer. A função do dentro pode ser o significado de “...forro...”.
Quando o “...forro do olhar...” interessa, ou é interessante, é um problema para quem se depara com tal interesse.
É como a voz de um cantor de 70 anos parecer ter 20 e emocionar.

O penúltimo monóstico está cheio de intriga e beleza. As “...lágrimas antigas...” não vertida, “...que esperam...”, têm máguas com u.

O interesse já mencionado tem um ponto alto no último verso, que dá nome ao título.

Quantas vezes já não perguntámos aos nossos a mesma frase, na segunda pessoa do singular?

Tudo sem um único amor, certo?


Como Estás


quando cheguei-te
a porta semiaberta
não abria
não fechava

lembro …trazer uma dúzia de chaves na mão
e todas as esperanças no coração

e tu…lá estavas … brotando beleza no solo nu …

o teu magnetismo rodava o meu corpo …sem saber bem o que fazer …
interessei-me pelo forro do teu olhar …
para lá daquela cor espigada, havia uma mágoa que queria decifrar …curar com a alma ….

sabes ...existem olhos que ainda esperam lágrimas antigas …

diz-me como estás?

Criado em: 1/6/2022 9:07
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Comentário a "Um tempo abstrato" de Idália

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6/11/2007 15:11
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Este poema, estranhamente, submete-me para a “Balada da Neve” de Augusto Gil.

A referência ao estado do tempo, altamente metaforizado, repete-se.
Nada de igual na estação do ano, nada de igual em qualquer que seja o verso,
Nada de igual.

Há, contudo, o espanto. E a indecisão.
Sobretudo, dos primeiros versos.

Todo o tom em forma dissimulada de pergunta, que quase inebria.
Aqui vai, para quem nunca leu:

(da “balada da neve”)

“Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim...”

A autora, ao contrário de Augusto Gil, não obedece a formalismos, excepto, à quebra de verso e estrofe.
Em verso livre, opta por espaçar os versos duma forma mais ou menos regular, mas que estende o poema.
A mancha gráfica torna-se espaçosa. Uma vista desafogada.
O primeiro verso é uma metáfora, num tom jovial, no qual o sujeito poético sugere aos leitores uma novidade que sente.

“Há uma invisível roupagem de verão...”

Apesar de não ser visível a olho nu, esse “...verão...” “...Há...”. O verbo haver é duma graça pegada. É o mesmo que existir, sem existir ser.
É como aprendemos a escrever “à” sem agá. O com agá, se pudermos substituir por existe, leva.

Então existe, não se vê.
A roupagem aqui é mais um calção, que pode levar outros nomes como, estio, calor, morno, bafo...
Ou outros sentidos, que se verão se aparecem.
Pode nem ser o fim do inverno, mas o verbo ver, no futuro do indicativo, na terceira pessoa do plural.
Quando se escrevia, com maiúscula, as estações do ano, havia menor ambiguidade.
O segundo verso ajuda a clarificar.

“...labirintos de folhagens novas...”

As “...folhagens novas...” são típicas da primavera. Mas o verso ganha beleza, quando os “...labirintos...” fazem-nos perder, na explosão que a natureza exige. Eis, como ser poético.
O resto da estrofe é bem conseguida, mas precisava do arranque que teve, para captar o leitor.

O dístico que se segue, contraria a minha suposição, de um sujeito poético que (se) questiona.

“...Não o questiono

nem lhe pergunto de onde vem...”

Apesar disso, creio haver alguma ironia suave em todo o poema, que se reflete bastante bem nestes dois versos.
Ainda assim, é uma leitura, essencialmente, de gratidão. E na verdade, por muito que valorizemos o conhecimento e a ciência (que é uma das ferramentas mais fortes para o adquirir), é sempre saboroso manter algum segredo na vida. É dele que vêm as surpresas, as más e as boas.
Mas continuando, e avançando para a última estrofe, o sujeito poético reafirma esse prazer, quando se refere ao “...mistério...”.
E fazendo novamente uso das metáforas, os dois versos que iniciam a estrofe são referências canónicas à escrita, à inspiração poética, a um ardor pressentido:

“...Será uma voz, um eco, um corpo

o voo de um pássaro...”

Muito belo este poema.
Agrada-me muito a tua chegada ao site.
Paro sempre para ler, e tenho de me esforçar para não favoritar a maioria dos teus textos. Tens esmero, respeito pela arte, e és esforçada sem forçar.

Abraço irmã


Um tempo abstrato



Há uma invisível roupagem de verão

labirintos de folhagens novas

indefinidos porvires

num tempo abstrato

que se entranha

e me acorda sentires.



Não o questiono

nem lhe pergunto de onde vem.



Será uma voz, um eco, um corpo

o voo de um pássaro

que ateia mistérios

no meu rosto.



Criado em: 18/5/2022 8:48
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Re: Comentário a "Dez Sonetos da Guerra na Crimeia (parte um)", de cheiramázedo

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6/11/2007 15:11
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Tu deves é querer conversa...
Carai!

Obrigado, mas ninguém te perguntou nada!!!

cheiramázedo

Criado em: 30/4/2022 9:05
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Comentário a "Muros" de maria.ana

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6/11/2007 15:11
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E eu diria, também, “omnipotentes”

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O poema, na sua íntegra, estará legível após o comentário.


Quando escolhemos publicar, seja em que formato for, on-line ou em papel (etc) podemos (devemos?) ter o cuidado de apresentar um certo esmero. Apresentar o nosso melhor, isto é. Sempre é a nossa assinatura.
Se vamos ser vistos (lidos), convém não ir à rua de pijama...
E o que eu noto na escrita deste autor é essa tendência para o esmero.
Aqui não há lugar para o pouco, o displicente, ou o fraco.
Depois, entre a forma e o conteúdo, há o bom e o excelente.
Aqui, para mim, estamos muito perto do excelente.
Deviam chover comentários e favoritos.

A questão da descodificação das metáforas, do enigma que, amiúde parece falta de clareza, ao olhar da preguiça, tem muito que se lhe diga.
Mas um breve “está lindo mas não percebi nada”, seria condição mínima para este poema.
É a minha opinião, e ela vale o que cada um achar.

Para começar, a opção de fazer a centralização do texto despedaça o habitual.
E, habilmente, divide em dois a página. Portanto o título “Muros” é feito, logo, na mancha gráfica.

Um muro é, literalmente, uma divisão duma área, duma superfície.
A divisão pode ser uma di-visão. Onde viamos um, vemos dois.
Há menos, mas há para mais (pessoas).

Um muro pode ser motivo de concórdia, ou de discussão.
Os muros podem dar segurança (eu até gosto, sobretudo de montanhas) ou tirar a vista.
Podem ser naturais mas, imageticamente, penso automaticamente em tijolos empilhados com cimento, sem reboco.

E os tijolos, serem aquelas figuras geométricas rudes e friáveis que acabam por fazer as paredes e o esqueleto dos edifícios.
Com quatro muros unidos entre si (em ângulos de 90 graus), temos algo cada vez mais raro, hoje em dia, a privacidade. Nem é preciso o quinto muro (gosto de pensar no tecto como muro).
Apesar de ser um conceito, cada vez mais, mal visto, a mim ainda me agrada muito o meu direito ao privado. Aos meus pecados pessoais e intransmissíveis.

Ainda uma referência à Alice (no País das Maravilhas), e o seu Ovo a passear no Muro, e o seu equilibrismo, sempre tão próximo de pôr o fim à vida.

Os Muros são, também, organização. Uma forma básica de racionalizar o espaço.
Tem tanto de poético, como de impoético.
Tanto haveria a dizer, e ainda nem saí do título e de como o poema parece um muro a dividir a página em dois lados, o direito e o esquerdo, o destro e o sinistro.

Começa o poema dum modo sonoro, nos dois primeiros versos:

“A voz do trompete a gemer

na dormência da luz...”

E estranho o espaçamento entre versos.
Há uma letargia, também na forma.
O gemido é uma expressão que vai do prazer à dor.
O “...trompete...” é um dos metais mais gritantes, imageticamente parece entrarmos num jazz, com muito pouco de improviso.
A “...voz...” é uma das palavras mais curtas e com mais impacto poético que conheço. Toda ela é significação de verbo, de palavra, mas dum modo muito reduzido, e tem uma vogal aberta que carece de acento (adoro).
O segundo verso, refere a luz dormente. Estamos num ambiente terrivelmente obscuro.
E o estranho que é (frágil até) um grito no escuro.

Os versos seguintes referem a fonte da escuridão:

“...Poderá ser o grito da loucura a revolta da

dor

contra a inclemência do caos universal

a trancar o tempo da utopia...”

Sem ser uma verdadeira suposição, como o verbo “poderá” implica, as palavras (vozes?) utilizadas são fluídas e cuidadas.
E não há como não referir que, na actualidade, o “...caos...” parece reinar, e que tudo parece ser possível e admissível, e as crescentes faltas de respeito pessoal e social são patentes, e impunes.
Essa “...dor contra...” é uma dor valente.
E a “...utopia...”, o sonho, o motor dos poetas não se pode “...trancar...”.

Os versos seguintes, são de um lirismo impressionante:

“...Dir-se-ia uma epifania amarrotada

um silêncio náufrago

cúmplice da salvação sem farol...”

O espaçamento entre versos leva, talvez, à reflexão...

A associação do “...náufrago...” ao “..farol...” é um dos pontos mais altos deste poema, porque encaminha-nos para as referências marítimas, que vão surgir, e é uma metáfora bem feita.
Uma “...salvação sem farol...” está condenada (?!).
O farol é um dos símbolos da esperança. Ponto de luz, que indica o caminho mais seguro a seguir.
O “...silêncio...” pode ser opção ou imposição, em todo o caso, pode ser um término, uma metáfora para morte, fim.
O clima obscuro continua.

O sujeito poético está, contudo, numa demanda. Que se lê, no trompete, por exemplo.
O mote directo para esta demanda, parece urgir nos seguintes versos:

“...num lamento de sangue partilhado

evocam fantasmas e demónios...”

E não consigo deixar de associar tudo isto à maldição da guerra.
O "...sangue partilhado..." sai das veias. E das artérias. E das bombas e da carnificina.

Um poema de antologia, este.



Muros


A voz do trompete a gemer

na dormência da luz.


Poderá ser o grito da loucura a revolta da

dor

contra a inclemência do caos universal

a trancar o tempo da utopia.


Nos escombros da luz chora o trompete

e a solidão da criança no coração do olhar.


Dir-se-ia uma epifania amarrotada

um silêncio náufrago

cúmplice da salvação sem farol.


E os meus olhos cobertos de sombras devastadas

bloqueados por um mundo em dissonância

procuram um verbo que nos devolva as estradas do mar


e


num lamento de sangue partilhado

evocam fantasmas e demónios

uivos que me consomem

omnipresentes.





Criado em: 23/4/2022 5:22
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Re: Amor em tempo de guerra, De Luís Sepúlveda

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Bela homenagem. A memória é curta, e é bom que haja quem, como tu, não esqueça e lembre-nos a todos a ter memória.
A guerra ao Covid19 ainda não acabou.
Ainda há ventilados, ainda há doentes com doenças pulmonares crónicas obstrutivas em perigo. Ainda...
O teu título fez-me lembrar um filme que adorei: "Amor em tempos de cólera"
Mas o do teu amigo é melhor.
Li há pouco tempo um do Afonso Cruz intitulado "Sinópse de amor e guerra" que me deixou um amargo de boca, que recomendo...

Abraço irmão

Criado em: 6/4/2022 4:08
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Comentário a "A papoila e o silêncio" de Zita Viegas

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Este comentário estará também disponível no perfil da autora, na caixa de comentários do mesmo,
o poema na sua íntegra estará no fim do mesmo.

“...O avesso
do silêncio.” é uma aliteração gostosa. Esse facto, a aliteração, era um bom motivo para nos questionarmos do poema. Toda a última estofe está cheia de esses.
Existem certos silvos, que vêm de serpentes, que são muito intimidatórios. Outros são apenas íntimos. Uma intimidade, não se manda calar um estranho. Um apelo ao silêncio. Shiu...

O avesso do silêncio é o agora. O presente.
O silêncio, na sua forma mais pura, é uma espécie de infinito.
Virado do avesso o silêncio é a Palavra.
Seja ela em forma de onomatopeia, em discurso prosaico, em declamação poética, em canção dos anos 60, ou canto lírico, e um enorme etecetera...
Sendo o silêncio ausência, o seu avesso é presença.

O canto, seguindo esta linha de raciocínio, é uma das presenças mais nobres, na minha opinião.
Sendo um poema a dizê-lo, torna-se num tipo de pleonasmo, repetindo-se conceitos. Um poema é o avesso do silêncio, se falar desse avesso, está a repetir-se... eh, eh...

Começando pelo início, “ A papoila\ aveluda\a brisa...”.
Fui ao dicionário ler o que pode ser a Papoila, e além da esperada botânica, surge um inesperado “conjunto das partes genitais femininas” cortesia do Priberam, saída nº 4 (calão, Portugal).
Ainda que seja calão, é um calão bem poético, podendo ser quase erótico.
A brisa é por si só um elemento de vento suave.
Ao aveludar a brisa, a papoila dá-lhe as características do veludo. Dois suaves na mesma estrofe. Mais um pleonasmo.
Convenhamos que o apelo erótico, o fazer uso da Papoila, é uma ferramenta de suavizar bastante persuasora.
Não há brisa que não ganhe veludo, não há que negar.
Gostei de saber que a seda é serícea.

Não há como discordar, que, assim como este poema, as pétalas da Papoila são inspiradoras, que é o que nos diz o fim da segunda estrofe.

Sete versos, muita riqueza vocabular, figuras de estio com fartura, uma linha de pensamento seguida e bem conseguida, um grande poema, bem pequenino na forma.

Já referi noutros, escrever assim tão bem em tão poucas palavras é um desafio tremendo e este encheu-me bem as medidas.

Obrigado pela leitura.


A papoila e o silêncio

A papoila
aveluda
a brisa.

Seríceas,
as pétalas
espalham o avesso
do silêncio.

Criado em: 6/4/2022 4:02
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Re: Poemas Classificados

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Luso-poetas, façam o que o Benjamin diz e vão ao Facebook do Bruno.
Tem poemas curtinhos bem curtidos...

No link supracitado, é só clicar...

Abraço a todos


Criado em: 2/4/2022 5:45
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Re: "Em tempos de guerra" de MarySSantos

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Fico satisfeito que o meu percurso de leitura (como diz o benjamin) te tenha agradado.
Se calhar não fui muito claro acerca do "grosso".
Achei o poema fino, requintado até, na forma como imageticamente todo o poema me suscitou enorme beleza visual, a contrastar com os horrores da guerra.
Para mim, quando alguém se refere a "curto e grosso" é mais relativo à clareza e algum poder de síntese com que uma mensagem é transmitida.

O grosso pode ser interpretado como grosseria. Mas não foi, de todo, o que depreendo to teu poema. Em momento algum ele foge do requinte, ou da finesse que senti.

Obrigado pelo feedback

Abraço irmã

Criado em: 2/4/2022 5:37
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