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Re: Comentário a "aos caídos da guerra", de RoqueSilveira
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2/10/2021 14:11
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Revendo os tópicos antigos deste espaço do fórum, vi que houve incentivos de vários utilizadores -- inclusivamente da RoqueSilveira -- para a elaboração de comentários "tendo em conta apenas o texto e nunca o autor".
É o que tento fazer, escolhendo poemas que, a meu ver, têm potencial interpretativo. A crítica sincera de textos sem qualidade também pode ser útil (especialmente para o seu autor), mas é uma tarefa que não me agrada e deixo para outros mais qualificados do que eu.

Criado em: 27/8/2022 8:59
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Comentário a "aos caídos da guerra", de RoqueSilveira
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2/10/2021 14:11
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"aos caídos da guerra", de RoqueSilveira

há no ar uma boca
com hálito de purga
que não escolhe quem levar
ao poço interior do pranto

entre quatro paredes
o linho acaricia mais um corpo nu
e as sombras somam-se
nas dunas dos dias repetidos

do ontem recortamos flores
às cegas e sem qualquer cor
como algo que ávidos colamos
(ninguém é santo)
entre a febre e um cálice de dor.

seguimos
recusando da realidade, o fim
do verso, do tom, do canto

procura-se a máscara que ajuste
o olho da providência
para tantos enganos, perdições

venham
Hórus, ou a Santíssima Trindade
porque andais, hoje
tão longe da humanidade?

-----------------------------

Percurso de leitura nº 14 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Estou a acabar de ler "A guerra não tem rosto de mulher", de Svetlana Alexievich (nobel da literatura em 2015), uma obra monumental que tem como cenário a II Guerra Mundial abordada sob uma perspetiva feminina. Trata-se de um texto "coral", ou seja, uma combinação de vários testemunhos recolhidos pela autora, jornalista bielorussa, que também inclui páginas do diário que escreveu enquanto recolhia as memórias de mulheres que participaram ativamente neste conflito. Os relatos são o retrato do que o ser humano tem de mais tenebroso e, ao mesmo tempo, mais sublime. Ao lado de descrições avassaladoras da crueldade no campo de batalha e fora dele, temos momentos de grande coragem, tenacidade e ternura.

Foi por estar ainda perturbado com esta leitura que escolhi comentar este poema de Roque Silveira, sobretudo pelo título, "aos caídos da guerra". Para além do tema óbvio da guerra, há um outro elemento comum entre o poema de Roque Silveira e o livro de Alexievich. O ponto de vista não é o dos vitoriosos nas batalhas, o objetivo não é fazer o louvor dos vencedores, mas sim a procura da alma humana, que existe mesmo nos lugares mais inesperados, como um cenário de conflito militar.

A metáfora da queda tem uma longa tradição e é usada em muitos contextos diferentes. Escolhi dois deles. Por um lado, remete para os anjos caídos bíblicos, condenados eternamente pelo desafio a Deus. Por outro, também encontramos a imagem da queda na expressão "estrela cadente", referente aos astros que, penetrando na atmosfera terrestre, entram em combustão. Em ambas as situações, há implícita a ideia de condenação, como resultado de uma ousadia, da tentativa de ultrapassar limites. Veremos que, neste poema, está presente a ideia de recusa do que é material, da aparência, para se abraçar algo que vai além da mera natureza física, desejo personificado na poesia.

O poema começa com uma "boca" que apenas se revela pelo seu "hálito de purga". As palavras desapareceram, os gritos silenciaram-se. Ficou apenas a exalação de um sacrifício, de uma imolação. Agora só existe esse odor purificador, como um espírito indiferente a quem com ele se encontra, que nos envolve e arrasta "ao poço interior do pranto". A morte ronda estes versos, ou melhor dizendo, as mortes: a dos que fisicamente perderam a vida e a dos que a mantêm, mas estão presos dentro de seu próprio sofrimento.

Esse encarceramento íntimo tem continuidade na segunda estrofe. Num compartimento fechado, vemos um sudário sobre o corpo despojado de tudo o que foi e teve, numa sensualidade fria e absurda ("o linho acaricia mais um corpo nu"). A expressão "mais um" aproxima-o dos demais, a sua individualidade perdeu-se na soma das "sombras", nos "dias repetidos", associados à metáfora nítida e rigorosa das "dunas": um local desértico, sem vida, que -- permanecendo estático -- simula movimento devido à forma ondulatória da areia.

Esta simulação da existência será a memória, que aparece na terceira estrofe. Do passado, restam "flores" falsas, de papel, recortadas e coladas "às cegas", com avidez, referência porventura ao desejo amoroso, que se experimenta como uma doença que nos devora e que nos condena ao sofrimento ("entre a febre e um cálice de dor"). A palavra "cálice" ganha aqui especial expressividade, ela que tanto significado tem para o cristianismo, como metáfora da resignação a um destino superior, cujos desígnios são imperscrutáveis.

Assim sendo, a "realidade" não pode deixar de ser algo que desilude e que se recusa. Ela é o "fim / do verso, do tom, do canto". A palavra "fim" tem, neste contexto, particular ambiguidade, podendo ser interpretado como o desfecho de algo ou como o seu objetivo. No primeiro caso, o mundo exterior, na sua aparente realidade, só existe com o desaparecimento da poesia, como seu oponente; no segundo, é a sua finalidade, apontando o poder transformador da palavra poética na experiência empírica do mundo.

Na minha perspetiva, será este último o significado mais coerente com a forma como o poema termina. As duas últimas estrofes convocam o conceito do divino, associado às expressões "providência", "Hórus" e "Santíssima Trindade", que terão abandonado a humanidade -- à semelhança do grito de Cristo "Eli, Eli, lama sabactani?". Restaria ao Homem, como único meio de autodeterminação, o verbo poético (bem como a "máscara" ou "persona" que lhe está associada), o único meio com a capacidade de eternizar esta criatura frágil e transitória, através da arte.

Deixo-vos ainda duas curiosidades.
Primeiro, em "olho da providência", parece haver uma menção subtil ao "olho de Hórus" [cf. ilustração], uma imagem que ao longo de séculos foi uma espécie de amuleto, por se acreditar que teria o poder de estreitar a ligação entre o corpo e a alma.

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By Jeff Dahl - Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3224752


Em segundo lugar, a escolha de Hórus para se colocar ao lado da Santíssima Trindade não é por acaso. Muitos egiptólogos e teólogos cristãos entendem que a história e iconografia do deus Hórus influenciou, em grande medida, o cristianismo. Em ambos os casos, temos a história de alguém que lutou contra o Mal, morreu às suas mãos e ressuscitou. E assim regressamos ao título: "aos caídos da guerra".

Não poderia terminar sem transcrever um excerto da obra que referi no início e de que recomendo a leitura:
"Não escrevo sobre a guerra, mas sobre o ser humano na guerra. Não escrevo a história da guerra, mas a história dos sentimentos. Sou historiadora da alma. Por um lado, estudo um homem concreto que vive num tempo concreto, tendo participado em acontecimentos concretos; por outro, preciso de descobrir nele um homem eterno. A trepidação da eternidade."
(in A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Alexievich, editora Elsinore, 2016, pp. 21-22)

Criado em: 19/8/2022 21:27
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Comentário a "Todos os nadas", de InchNails
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2/10/2021 14:11
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"Todos os nadas", de InchNails

"Com estas flores pensava, doce donzela, adornar teu leito e não espalhá-las sobre tua sepultura."
(Hamlet) Cena I, Ato V

A tempestade quente derruba o nome
Por excursão na casa dos todos os relapsos
De paredes submersas, dos olhos insones
Cada dia é igual ao mesmo que te reparto

Cada hora é contada pra te vender depois
Na escuridão dos cegos que te louvam
Pela ideia confiável de sempre seremos dois
A mentira rarefeita, em asas que te povoam

Até.. um palmo extra do chão pra te fugir
Da indecisão a reinar o tempo e assim, seguir
Uma carta pra deixar acesa, sob fogo fátuo

Uma água de beber até os seus quadros
Por evento da memória irreal, provocada
Nessa soma de todos os dias, todos os nadas


-----------------------------

Percurso de leitura nº 13 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

O título deste poema constitui uma antítese que conjuga as ideias de tudo/nada, que são a base da construção do texto, mas não o único contraste que poderemos encontrar – há outros, como o da água e do fogo, da luz e da escuridão, da permanência e da transitoriedade.

O primeiro verso começa com a palavra "tempestade", que tem uma etimologia curiosa. Começou por estar relacionada com a ideia geral de tempo. Aliás, o mesmo acontece com a palavra "temporal" que, como adjetivo, designa algo relacionado com tempo, mas, como nome, refere-se a um estado meteorológico de grande turbulência.

O lado destruidor deste fenómeno é confirmado, logo a seguir, pelo verbo "derruba" que tem como complemento um "nome", o sinal que nos distingue, a nossa identidade. A quem pertencerá este nome? Uma associação possível seria ao vocábulo "relapsos" – referindo-se a alguém que é obstinado, que insiste em algo, que não desiste mesmo que saiba que se trata de um erro.

A tempestade invade a "casa" destes relapsos e inunda as "paredes" (os fundamentos) do espaço onde vivem esses seres que reincidem nas suas falhas ou transgressões. Talvez por isso é que possuam "olhos insones", condenados a uma eterna vigília.

No último verso desta quadra, há uma nova referência ao tempo ("cada dia"), que é distribuído, compartilhado com um misterioso "tu", que faz a sua primeira aparição no poema.

Assim sendo, conjugando as ideias até agora apresentadas, este "eu" e este "tu" serão, portanto, os "relapsos" "dos olhos insones", que veem o seu "nome", a sua identidade, destruída por essa tempestade, por esses dias iguais que dividem um com o outro, com teimosia, apesar de tudo.

A segunda quadra inicia-se com nova referência temporal – "cada hora" – que é "contada" (contabilizada ou narrada, as duas aceções são possíveis neste contexto). Com que finalidade? Para vender ao "tu", que compra todos esses preciosos momentos, mesmo que o "eu" alerte para uma única certeza: de que "sempre seremos dois", nunca haverá a fusão numa só identidade.

Alusão ao amor? Parece que sim, sobretudo se tivermos em conta a epígrafe do poema, que se refere ao momento da tragédia de Shakespeare em que Hamlet descobre que a sua amada Ofélia está morta. As flores são, ao mesmo tempo, uma homenagem à sua beleza e um tributo ao amor interrompido pela morte. Esta personagem poderia, tal como o sujeito poético, concluir que as ilusões de permanência serão sempre "escuridão dos cegos", "mentira rarefeita"...

"As asas que te povoam", deste ponto de vista, poderão ser lidas como quimeras de eternidade, que o "eu" se apressa em descortinar como apenas "um palmo extra do chão". O sujeito sabe que "reinar o tempo" é impossível, todavia, há uma "indecisão" que talvez tenha a ver com a impetuosidade dos sentimentos, que impedem uma total racionalidade.

O "fogo fátuo" que incendeia uma "carta" é uma imagem muito forte do que este poema pode representar: a notícia simbólica da transitoriedade da existência e das emoções, que inexoravelmente passarão a frágeis imagens ("quadros"), simples "memória irreal", uma soma de "dias" e de "nadas" que, apesar de tudo são "água de beber" – são eles que, nos seus paradoxos e vulnerabilidades, constituem essa heresia (cf. tags) a que damos o nome de vida.

Criado em: 14/8/2022 17:47
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Comentário a "Epinício de wagner", de atizviegas68
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2/10/2021 14:11
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"Epinício de wagner", de atizviegas68

Ónuris traja fuzis.
Barbas e peito [Varão.
D´império.
Na toada d`equinos.
Com ferros matarão.

Ares de peito em bronze.
Cruza terras.
E, lança grinaldas.
Num corcel a galope.
Leva bandeiras e feras.

Cães d`afiados dentes.
Cólera e domadores.
Com flecha nas laterais.
Homens. [Deuses combatentes.
Cípris lágrimas mortais.

Do punho de Týr.
Soam baionetas.
Fogo em madeixas.
Com balas e genetas.
Deixas fundas valetas.

Com a armada de Odin.
Com seus corvos Hugin e Munin.
Põem o mundo a sofrer.
Com o toque da chibata.
Toca-se o epinício de wagner.

-----------------------------

Percurso de leitura nº 12 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Há muito que queria comentar um poema desta autora. Há nos seus textos uma sonoridade e um imaginário distintivos, uma certa "dignidade" da palavra, que é usada sempre com precisão e propriedade, com ambiguidades e polissemias sempre à espera de quem as queira encontrar.

Este poema em especial é um festim para quem aprecia uma boa exploração literária, histórica e mitológica. Vou dar o meu melhor, confessando já que muitas das referências que vou trazer para aqui são resultado de uma simples pesquisa na Internet e não de um conhecimento aprofundado sobre os temas em causa. Conto com a compreensão e com a boa vontade da autora para esclarecer algum ponto que, por isso, não tenha sido destacado e que tenha interesse para a interpretação.

Comecemos pelas palavras do título.

"Epinício" era o nome dado a certos poemas da Grécia Clássica, escritos em louvor de uma vitória atlética. Todavia, mais do que descrever a circunstância da competição, o epinício constituía um espaço livre de exaltação da beleza e do sublime, da justiça e do amor.

Quanto a "Wagner", há duas interpretações possíveis, que estão relacionadas.
Por um lado, existe um grupo paramilitar designado Wagner que, segundo o link apontado pela autora, é uma organização de apoio à Rússia nos conflitos em que se encontre envolvida, como é o caso da atual invasão à Ucrânia.
Por outro lado, pode referir-se a Richard Wagner, compositor alemão do séc. XIX, universalmente conhecido sobretudo pela sua marcha nupcial e pela composição "Cavalgada das Valquírias", tantas vezes utilizada no cinema em cenas de especial grandiosidade.

A relação entre estas duas interpretações está no facto de a designação do grupo paramilitar ser uma homenagem que o seu fundador quis prestar ao compositor. Até porque este ficou associado ao regime nazi de Adolf Hitler, que se apropriou da sua música para apologia das ideias antissemíticas (que aliás o próprio Wagner defendia).
Para "libertadores de nazificações", não há melhor banda sonora...

Em suma, temos aqui algumas referências que remetem para a situação atual do ataque à Ucrânia, que seria o motivo que enquadra o tema da guerra, observado pelo "eu" de forma irónica (não, obviamente, como perspetiva humorística, mas como via de apreensão de paradoxos da sua natureza).

Começa com a identificação de Ónuris, o deus egípcio da guerra. Conforme o poema avança, são convocados outros deuses de outras mitologias, que são apresentados como se fizessem parte de um desfile, cada um com os seus atributos. No caso de Ónuris, a barba do segundo verso é uma das características físicas deste deus, que envergava ainda um adorno de penas na cabeça e uma lança. Aqui o traje é composto por "fuzis", um dado que confirma o motivo bélico que já antes apontámos.

Aparece aqui o primeiro de dois parênteses retos que não se fecham – com um efeito semelhante aos dois pontos, mas ainda mais pronunciado em termos visuais – como que a dizer que há algo por descrever que fica por concluir. No vocabulário ("varão", "império", na metonímia "ferros"), há reminiscências de epopeias como Os Lusíadas, um certo tom épico, mas nem exaltado, nem de exaltação de algo, antes austero e intimidante.

Da "toada d'equinos" de Ónuris, passamos ao "corcel" de Ares, o deus grego da guerra, de couraça de bronze, acompanhado de "bandeiras e feras", mas parecendo longe de qualquer objetivo militar, pois limita-se a lançar "grinaldas". Confesso que, numa primeira leitura, erradamente troquei esta palavra por "granadas", influenciado certamente pelo contexto anterior. Seria propositada a escolha desta palavra pela sua sonoridade?
Um jogo de palavras que me parece mais intencional é o das palavras "Ares" com "terras", interpretando o nome do deus como um dos elementos primordiais.

A terceira estrofe abre com frases nominais, fulgurantes no imaginário de violência para que remetem: os "cães d`afiados dentes", os "domadores" coléricos, as "flechas"... Segue-se a referência "Homens", seguida de "Deuses combatentes". Para dizer que, numa batalha, há algo de mítico nestes seres que procuram a sobrevivência em situações adversas? É certo que é perante um grande desafio que se ultrapassam barreiras. Também se pode ler aqui aquilo que encontramos nos épicos clássicos: a presença dos deuses nos campos de batalha, disfarçados de homens, mostrando pelo exemplo que os feitos guerreiros serão porventura aqueles que maior honra poderão trazer. Pelo menos, seria essa a visão homérica e camoniana...

Todavia, esta estrofe não termina sem a presença de um lado humano, de denúncia do sofrimento que a guerra necessariamente implica, através da figura de Afrodite ("Cípris"), a deusa do amor e da beleza.

Para as últimas duas estrofes, está reservada a mitologia nórdica. Em primeiro lugar, surge Týr, combatente corajoso, filho de Odin (referido na estrofe seguinte) e irmão de Thor (conhecido das aventuras da Marvel). Segundo a lenda, a sua mão direita teria sido arrancada pelo lobo Fenrir, que abusou da sua credulidade. Aparece aqui numa espécie de vingança – do "punho" sai fogo e destruição. A ideia de vingança pode ser entrevista na palavra "deixas", cuja ambiguidade permite entendê-la como sinónimo de respostas ou como forma do verbo deixar na 2ª pessoa.

Em segundo lugar, temos o já referido Odin, deus da sabedoria, da guerra e da morte. Normalmente, era representado na companhia de dois corvos, Hugin e Munin, que representam o pensamento e a memória, conceitos que não atribuiríamos imediatamente à guerra, mais associada ao lado instintivo e selvagem do ser humano. O que, pensando bem, talvez não seja totalmente verdade: as estratégias militares são muitas vezes fruto de grande reflexão e de uma certa forma de olhar para o passado, como o prova a visão imperialista que está na origem do conflito na Ucrânia. A racionalidade, em si mesma, não é necessariamente um valor.

Termina o poema como começou, lembrando a todos aqueles que se sentem atraídos pela grandiosidade das paradas militares e dos jogos de guerra que há um quadro horrendo -- e tantas vezes invisível -- das vítimas para quem os dois lados do campo de batalha são igualmente destruidores. Por entre o silêncio da destruição, escuta-se um cântico de glória que mais não é do que o som da "chibata" (repare-se no duplo sentido de "toque"), que recai sobre o "mundo", sobre todos aqueles para quem os hinos bélicos têm a mesma melodia de uma marcha fúnebre.

Criado em: 30/6/2022 8:27
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Re: Poesia sem poetas?
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
Fez bem em lembrar que, por vezes, falamos num "admirável mundo novo" muito avançado e esquecemos que, mesmo ao nosso lado, há quem viva sem acesso à tecnologia e até a condições básicas de sobrevivência.

Criado em: 26/6/2022 20:55
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Re: Poesia sem poetas?
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
Não creio que nada venha a substituir a essência que permanece nos textos de um ser humano que arrisca criar algo com a sua verdade e com a sua experiência.

Mas há que reconhecer que, nestas tecnologias, existe algo que nos provoca e indaga, o que pode não ser necessariamente mau...

Criado em: 25/6/2022 13:54
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Poesia sem poetas?
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
O assunto que trago, não sendo sobre a língua nem sobre a cultura portuguesas, parece-me de interesse geral, daí ter colocado neste espaço.

Gostava de partilhar convosco um artigo da New Yorker (de anteontem, 21/06/2022), em que se fala nos avanços da Inteligência Artificial:

The New Poem-Making Machinery
(A nova máquina de fazer poemas)

Um desses "avanços" é a escrita automática de poesia.
Bem, não será exatamente aquilo que entendemos por criatividade poética. O que o software faz é utilizar um algoritmo para, a partir de um tema, criar um texto copiando o estilo de um determinado autor.

No artigo, são apresentados exemplos de alguns textos criados automaticamente, como este, em que foi selecionado o tema "Singularidade" e, como estilo a copiar, o do autor Philip Larkin:

The Singularity

The Singularity is coming up
To meet me at the station
With flowers and a smile and
Some bad news.


A Singularidade

A Singularidade está a chegar
Para me encontrar na estação
Com flores e um sorriso e
Algumas más notícias.


Conheço mal a poesia deste autor, mas parecem-me evidentes certas características que encontrei em poemas dele: um estilo aparentemente banal, direto, quase infantil, mas ao mesmo tempo, muito simbólico, quase aforístico.

Enfim, muito do que é escrito por este sistema soa a falso e sem qualidade, mas alguns textos são terrivelmente interessantes.
O autor do artigo, Simon Rich, teme que a I.A. esteja a ir demasiado longe. Termina o seu texto dizendo:

"Em suma, teremos de inventar algo que seja capaz de pensar mais rápido que a I.A. e que a mantenha sob controlo. A essa invenção daremos o nome de 'homem'." [tradução livre]

Criado em: 23/6/2022 8:12
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Re: Comentário a "utopias", p/ Transversal
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2/10/2021 14:11
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Muito obrigado pelo feedback, meu caro.

Efetivamente, gostei muito do seu poema e agradeço as observações.

Cruzei-me com Catulo há muitos anos e já me tinha esquecido do "Odeio e amo". Tenho de fazer revisões da matéria dada :)

O "Rosa do Mundo" é uma obra monumental.
Há dias, folheei uma outra antologia extraordinária, mas apenas com poesia portuguesa:
https://www.wook.pt/livro/poemas-portugueses/1456867

Um abraço e continuação de boa inspiração

Criado em: 6/6/2022 8:25
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Comentário a "utopias", de Transversal
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
Link para o texto original

"utopias", de Transversal

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existem estranhos amiúde
esparzindo ócios imarcescíveis
símiles aos domingos nas cidades.

amo e odeio estas calmarias.

marulhares por perto
levam e trazem
utopias da alma hiperbórea. o mar lá está

afaga imagens aleatórias
que nada de novo escondem. fixam-me.

[enquanto se entranham]

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Percurso de leitura nº 11 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Como se explica que estejamos perdidos se não somos de lado nenhum?

"Utopia" é um composto grego de dois radicais: "ou" ('não') e "topos" ('lugar'). Uma interpretação literal aponta, portanto, para um não-lugar, para uma ausência de espaço.
Se se trata de um lugar que não existe, podemos autorizar-lhe o plural? Talvez, se admitirmos uma geometria da ausência total, em que há um "lá fora" radical, a ausência de todas as presenças e até da própria ausência, uma forma particular e singular de exílio, em relação aos outros e a cada um de nós.
Um título promissor...

Antes das palavras, percorremos vários sinais gráficos, traçando manchas semelhantes a versos. Rastos de palavras que desapareceram, permanecendo apenas as pausas, os silêncios, as ausências.

"existem estranhos amiúde". Quem são estes "estranhos"? O poema não esclarece. Ou se calhar até esclarece, através sua própria essência – pois não será o texto poético o lugar (ou não-lugar, se quisermos começar a estabelecer relações com o título) onde o estranhamento, como rompimento de todas as regras, é afinal a única regra?
Etimologicamente, estranho nasceu como "extraneus", significando 'o que é de fora, o desconhecido, o não-familiar'. Novamente a ideia de um exterior a algo, que não sabemos precisamente o que é.
O que podemos já antecipar é que o poema termina com o termo que se encontra no ponto oposto – "entranhar", isto é, a ação de algo que penetra, que se impregna, que se torna parte integrante do seu objeto. E o poema é esse percurso, esse processo, de fora para dentro.

"esparzindo ócios imarcescíveis / símiles aos domingos nas cidades". Associado à palavra "domingo", o verbo "esparzir" tem qualquer coisa de religioso: lembra-nos o pároco nas cerimónias da nossa infância, com o gesto memorável de levar o hissope à caldeira e espalhar a água benta pelos fiéis. Não é difícil encontrar aqui paralelo com as palavras tornadas metáforas, esses "ócios imarcescíveis", que não perecem, que vivem em permanente ressurreição, pela exegese sempre nova que suscitam.

"amo e odeio estas calmarias" confessa o "eu" poético. Momentos de ausência, mudos, na expectativa de algo desconhecido e novo, que está "por perto", como o espírito a pairar sobre as águas, a "marulhar" antes da explosão da criação. A "calmaria" como prenúncio da "alma", como presságio do "mar" – as similitudes de som não serão certamente aleatórias...

Eis que chega a hora do movimento, hesitando entre a aproximação e distanciamento ("levam e trazem") de um lugar que não existe – as "utopias" do título – questionando a existência de um sentido, o norte que o adjetivo "hiperbóreo" parece apontar. Um mar que "lá está" – na sua evidência e também no seu mistério.

Esse mar "afaga imagens aleatórias / que nada de novo escondem. fixam-me." Pressentimos aqui uma ligação afetiva a essas "imagens aleatórias", que não escondem "nada de novo" – ambiguidade que se pode referir a uma novidade que não existe ou à repetição da própria inexistência. No entanto, são essas imagens que fixam o sujeito poético, que o observam ou que o seguram a um lugar, pela primeira vez no poema. Paradoxalmente, será esse lado arbitrário, fortuito, a tornar-se o habitat da voz poética, a sua identidade. O percurso da utopia e do vazio dá lugar ao imo secreto (entre parênteses retos) do "eu".

Como se explica que estejamos perdidos se não somos de lado nenhum?

Pela consciência de que perdermo-nos não é uma circunstância: é um estado permanente que nos dá forma e conteúdo. Que nasce pela expulsão da norma, do que é comum e natural – para, do lado de fora, como a um proscrito, nos revelar quem somos por dentro. A condição humana transfigurada em palavra.

Criado em: 29/5/2022 15:33
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Comentário a "Dez Sonetos da Guerra na Crimeia (parte um)", de cheiramázedo
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2/10/2021 14:11
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[Também poderão ler o texto no final deste comentário]

Percurso de leitura nº 10 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Desta vez, destaco um conjunto de sonetos de um heterónimo de Rogério Beça, chamado cheiramázedo, trasmontano do "carai", "fiel a si mesmo" e "mau como as cobras". Adora "discutir gostos" e "ser provocado". Arrisco-me a que responda com um "obrigado mas ninguém lhe perguntou nada!", porém vou arriscar…

Para começo de conversa, tenho de confessar uma certa dificuldade em fazer análise de um texto que vale, em primeiro lugar, pela trágica dimensão social que retrata. O facto de abordar um assunto sensível como a guerra ― ainda para mais, quando é tão próximo de nós, no tempo e no espaço ― pode criar um certo pudor em criticar de forma neutra o texto. Até porque sabemos que a literatura de "intervenção" tem um significado algo pejorativo, já que certas obras que abordam temas como a desigualdade, a injustiça, a opressão… apresentam um claro desequilíbrio entre, por um lado, a força da denúncia e, por outro, a debilidade estética do discurso.

Todavia, se recomendo estes "Dez Sonetos da Guerra na Crimeia", é porque neles vi algo mais do que apenas a militância contra a guerra. Nas linhas seguintes, vou dar uma visão panorâmica destes poemas, esperando que lhes dediquem algum tempo de leitura e reflexão.

O primeiro soneto ― "À mulher e ao filho de Yuri" ― apresenta-nos um nome popular quer na Rússia, quer na Ucrânia, Yuri, o correspondente ao nosso "Jorge". O poema dá-nos a entender uma situação dolorosa, possivelmente de morte, envolvendo a esposa e a criança deste homem ("o sangue deixou-o possesso" e "de mulher e filho no pensamento"). Yuri encarnaria, na minha perspetiva, a figura do herói que luta pela sobrevivência, em paz ou em guerra, que tudo perdeu e a quem só sobrou a loucura para lidar com o vazio. Trata-se do reverso do mito de Pessoa: ao contrário do "nada que é tudo", temos aqui o "tudo [que] era nada".

O segundo soneto ― "Outro Olhar a disparar" ― inclui no título o verbo "disparar", que apresenta um campo semântico diversificado, podendo referir-se obviamente a armamento, mas também, por exemplo, a uma câmara fotográfica ou até a uma forma brusca de responder a alguém. Estes dois últimos significados surgem na primeira quadra, aplicados aos órgãos de comunicação social, que têm duas faces que se opõem. Por um lado, a palavra "alavancas" pode apontar para um lado benigno dos media, que tantas vezes constituem forças impulsionadoras da opinião pública e das instituições políticas, empurrando-as para a ação (neste caso, "contra um dos maiores impérios"). Por outro lado, podem ser apenas mais uma forma de entretenimento, nos intervalos das novelas e do futebol ("alimentam as câmaras", "nada mudam", sobrando apenas a dor postiça de "ficar a ver"). Curioso o adjetivo "rogérios" aplicado a estes versos ― mostrando que o poeta, ironicamente, evita colocar-se numa posição de superioridade em relação aos outros, nomeadamente ao leitor.

O terceiro soneto ― "Reserva Territorial" ― apresenta um título muito expressivo, recorrendo a uma expressão comum da lei do serviço militar, designando o contingente de cidadãos que, não tendo cumprido o serviço efetivo, se mantêm sujeitos a obrigações militares. Aqui, fala-se dos "felizes numa frágil bolha", que se indignam com os horrores da guerra à distância, que se colocam na pele das vítimas, que foram "arrombados do sorrir e do viver". A reação natural é "mostrar os dentes", mas não o "morder". Contudo, as questões "Será uma escolha minha? Tenho escolha?" afastam os moralismos associados a esta posição, embora não afastem o desconforto, a vergonha e a raiva interiores.

O quarto soneto ― "Insubmisso" ― é o momento de "revolta fria, ácida, sublime", característica de cheiramázedo, que não se coíbe de recorrer a uma linguagem antipoética para mostrar a sua indignação e a fidelidade aos seus. O seu lado instintivo, de "animal que perdeu o juízo" e que "ama o crime", pode talvez ser uma reação aos submissos do poema anterior, que baixaram "a cabeça muitas vezes".

O quinto soneto – "Cheque ao Czar" – remete-nos para o universo do jogo de xadrez, metáfora do conflito armado, em que há apenas um rei absoluto, "sem que haja segundo", num "tabuleiro gasto e partido". Interessante a utilização da expressão "de giz", para se referir aos "cavalos, torres, bispos". Se recordarmos que a palavra "giz" está na origem do verbo "gizar" (com o significado de "planificar, arquitetar algo"), talvez se possa interpretar esta referência ao momento dos estrategos de ocasião que pululam pelos media, a ocupar o espaço de (des)informação dedicado no dia anterior aos epidemiologistas, virologistas, bioquímicos, matemáticos...

O sexto soneto – como admite com humildade o autor — vai buscar o seu título a um poema do "colega" do Luso-Poemas Namastibet — "Papoila é nome de guerra" – ao qual junta a ressalva "e eu sou Cravo". A cada uma destas flores está associada uma determinada simbologia. Talvez por uma das suas espécies estar na origem do ópio, ao longo dos séculos, a papoila simbolizou as ideias do sono, do sonho e da morte, aparecendo ligada, por exemplo, aos deuses gregos Morfeu e Nix, respetivamente, do sono e das trevas. Quanto ao cravo, quase não é necessário o esclarecimento – constitui o símbolo maior da revolução portuguesa de abril de 1974. O poema é construído em métrica curta, lembrando por vezes as lengalengas infantis, que iludem por momentos as referências duríssimas à ausência de bens de primeira necessidade entre as vítimas da guerra.

O sétimo soneto – intitulado "KGB" – começa uma ironia glacial: um convite animado e amistoso para as maravilhas de Leste ("venha de lá um sol de Leste [...] um pouco de luz e caridade"). Na estrofe seguinte, o tom bem-disposto dá lugar à dura realidade ("até que nem pedra sobre pedra reste", "guerra e fome, a realidade"). No final, esse convite é endereçado diretamente aos famosos serviços secretos russos, "para acabar com a face de um povo", numa assunção clara das ambições dos invasores da Ucrânia.

O oitavo soneto – "Em Odessa" – traz para o título uma cidade ucraniana que, no momento em que escrevo, tem sido especialmente atingida por ataques das forças russas. Todavia, não são propriamente os confrontos militares o assunto central deste poema, mas sim uma consequência da invasão que dura desde final de fevereiro. A fuga de ucranianos tem sido alvo de tentativas de tráfico de seres humanos, sobretudo mulheres. O ato repugnante de exploração sexual é destacado no poema como uma "vergonha escondida" – característica que não é atribuída apenas aos monstros que praticam a violência, a escravidão e o lenocínio, mas a todos nós ("minha e tua"), que assistimos, impotentes, à putrefação de um mundo que o "eu" – em nosso nome – concebe como uma "cobardia que hoje engulo".

O nono soneto – "Sem solvente" – apresenta os dois componentes necessários a uma solução química, o soluto e o solvente. Em relação ao soluto, parece haver um jogo de palavras com a sonoridade da palavra, que poderia ser decomposta em "" e "luto" – verbo que nos surge nos tercetos, numa espécie de refrão, em que o "eu" assume o combate "com sonetos", uma expressão particularmente ambígua. Quanto à dramática situação descrita nas quadras ("queimaram-se [...] a paz, o amor", "a maternidade, sem bebés a chorar, / é difícil de calar" – uma antítese de grande intensidade), será contra ela que o sujeito poético combate, através dos sonetos? Ou será que ele combate contra o próprio soneto, que não permite transpor nele o tumulto interior que sente? Ambas as interpretações cabem num soneto que, sem solvente, não terá também solução, nas duas aceções que a palavra permite. A vida, entretanto, pela destruição, parece recuar até ao nada – pelo menos, assim interpreto os versos "começaram a vida da frente para trás / de trás para a frente ninguém a traz".

O décimo e último soneto – "o caos perfeito" – é todo escrito em minúsculas, ao contrário dos restantes nove poemas. Caos (com maiúscula) é a designação do primeiro deus do universo, cuja etimologia aponta para um verbo que significa separar. Desse ponto de vista, Caos é o contrário de Eros, a força que nasce da união dos elementos. O poema trabalha estes conceitos através da simbologia dos números. Consideremos o número mil. Para os romanos, tratava-se do número supremo: o M era a última letra a configurar um número. Assim sendo, o novecentos e noventa e nove é a representação da proximidade de restaurarmos a perfeição da nossa essência que, por sermos humanos, é sempre caótica. Falta apenas uma palavra "para que o amor se renove", para reconstituir todas as outras palavras que nos dão a alegria espontânea de uma "graça que disse / sem piada"— essa "meninice" que todos temos em potência — e que parecem sepultadas, nestes tempos, sobre os destroços da guerra.

Estes sonetos mereceriam certamente uma análise ainda mais pormenorizada, como tantos outros poemas do mesmo autor que, nos últimos tempos, têm surgido por aqui.
Fica o convite a quem queira abraçar esta tarefa e partilhar com os outros as suas interpretações pessoais, como eu e o Rogério Beça temos tentado fazer neste espaço. Embora eu e o meu caro irmão de letras gostemos de nos demorar no prazer de partilhar a nossa leitura, isso não implica que todos tenham de fazer exposições tão longas – podem começar simplesmente pela leitura de um verso, de uma metáfora, de uma palavra...

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"Dez Sonetos da Guerra na Crimeia (parte um)", de cheiramázedo

1. À mulher e ao filho de Yuri

Deixou mais uns tijolos sob reboco,
uma casa, talvez um apartamento,
tudo o que tinha em rublos ao vento
e tudo era nada, pensou um pouco.

O sangue deixou-o possesso, louco,
capaz de enfrentar a frente e o cento,
mas, de mulher e filho no pensamento,
trocava a sua vida, e deixava o troco.

Há tantos nomes em ucraniano
como em russo, ou português;
em todos eles há femininos, e plural.

Venham todos conhecer o Lusitano,
como, certo dia, um visigodo fez,
venham conhecer o nosso Portugal


2. Outro Olhar a disparar

Disparam flashes e luzes brancas;
algumas mulheres capazes e mancas
disparam somente fel e impropérios,
contra um dos maiores impérios.

Caras duras frias cínicas e francas
alimentam as câmaras - alavancas;
ou escrevem uns versos rogérios,
que nada mudam, por mais sérios.

Ficar a ver dói, à porta do hospital,
em vez da ambulância, destroços,
em vez de equipas médicas, bombas...

A face mais negra da guerra, do mal,
imaginar que podiam ser os nossos
a defender sua casa, de facas rombas.


3. Reserva Territorial

Eu até irei à guerra que sei ir perder
mostrar os dentes a, em vão, morder;
os pés, o tronco, o fígado, os braços,
de armas ao léu apontadas a espaços.

Se os meus pais, os vizinhos sem poder,
forem arrombados do sorrir e do viver,
que fazer? Se em mim vejo todos' traços
findos, acabados; vou à guerra dos aços!

Será uma escolha minha? Tenho escolha?
Penso, sem escolha alguma, que não.
E saio à rua, envergonhado, da reserva.

Andamos todos felizes, numa frágil bolha,
que rebenta, à bomba mesmo no coração.
E esse não, que é ir à guerra, me enerva!


4. Insubmisso

Já baixei a cabeça muitas vezes,
é um mal de muitos portugueses,
mas se levanto os cornos, é alto
e para o baile, isto é um assalto!

Já disse que sim, durante meses
a fio, a abusadores com fezes.
Mas o meu, não é azul cobalto
e se os meus gritam, não falto.

Tenho um lado que ama o crime,
que guardo fundo no meu sorriso,
que escondo com receio e medo.

É revolta fria, ácida, sublime
de animal que perdeu o juízo,
que se deita tarde e acorda cedo.


5. Cheque ao Czar

Comecemos com as peças pretas,
o jogo está viciado, como as setas
com um alvo do tamanho dum país.
O mundo, guerra nuclear por um triz.

A rainha nova, rússia é das prediletas,
num jogo sem mãos, baionetas,
só peões armados em povo infeliz,
uns cavalos, torres, bispos, de giz.

Há um Rei, sem que haja segundo,
há um tabuleiro gasto e partido,
um relógio que cronometra a hora.

É mandar os putinhos do mundo
para a Sibéria. Dela terem saído
foi o erro que pagamos, agora...


6. Papoila é nome de guerra, e eu sou Cravo

Custa dar luta
a filhos da puta,
papoila é nome
da minha fome.

Coisa enxuta,
fundo de gruta,
facas, o pome
não se come.

Dar remédios,
bens alimentares,
é o que segue.

Que os assédios
e os odiares
não há quem negue...

Nota: "Papoila é nome de Guerra" tem direitos de autor, é o título de um poema fortíssimo dum poeta que se auto-intítula Namastibet, a ele o meu obrigado pela inspiração


7. KGB

Venha de lá um sol vindo de leste,
venha de lá de Buda e de Peste,
venha um pouco de luz, e caridade
a toda a vida, sem idade.

Até que, nem pedra sobre pedra reste,
haja paz e amor, um dia disseste,
tudo em vão e sem propriedade.
Guerra e fome, é a realidade.

Uma nova Rússia imperial
com czarinas, chega de moscovo
e todo mundo da NATO, as vê;

disfarçadas de novas forças do mal,
para acabar com a face dum povo,
venha lá, de novo, o KGB.


8. Em Odessa

Em Odessa há uma vergonha
escondida, que cá ninguém sonha:
Ucranianas à venda na rua
numa montra, suja e sua.

Como o vinho de borgonha,
que sabe a mel e a peçonha,
que em rublos euros se continua,
virgem, velha, minha e tua.

Que nenhum povo está isento
da mais velha profissão do mundo,
e da máfia que traz cada chulo.

Mas Odessa será feita de vento,
com o perfume nauseabundo
a cobardia que, hoje, engulo.


9. Sem Solvente

Deixaram um soluto solto ao ar,
e duma faísca feita foi-se queimar;
queimaram as palavras, como a paz,
o amor, sob destroços d'hospitais jaz.

Começaram a vida da frente para trás,
de trás para a frente ninguém a traz;
a maternidade, sem bebés a chorar,
é dum silêncio difícil de calar.

O fim dos poemas, fim da poesia,
tem o adjectivo imoral de guerra,
eu luto cheio de ira com sonetos.

Faremos mais uma outra guerra fria,
que os russos voltem pra sua terra.
Eu luto, cheio de ira, com sonetos!


10. o caos perfeito

novecentas e noventa e nove,
as palavras contadas ao segundo,
para uma imagem de paz no mundo,
num tempo parado, que não se move

uma, para que o amor se renove,
ou mais, para que seja mais profundo,
mil, a conta certa, o ar moribundo.
Só novecentas noventa e nove,

as palavras para descrever o rosto
que fazes ao rir, duma graça que disse
sem piada, e tanta falta de jeito.

Imagens que ficam, pedra e desgosto
espalhadas no chão, sobre a meninice;
o caos perfeito.

Criado em: 29/4/2022 18:48
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