Comentário a “crença caduca” de AliceMaya

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6/11/2007 15:11
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O poema, na sua íntegra, estará legível após o comentário.

Poema interessante.

Tem três versos, mas a métrica é feita a doze sílabas (não sou fã de olhar a elisões), para lá do heróico, por exemplo, e também das clássicas sete sílabas, ou as suas irmãs (seis e oito).
Se aliás pensássemos nessa forma de clássica de seis, teríamos o dobro. O que significa que em vez de três versos poderíamos ter seis, um número diabólico :).

Tem duas estrofes.
Seguindo o raciocínio supracitado, podiam ter quatro.
Se tivéssemos a lógica de que o leitor, assim que lê um poema, este pertence-lhe, o meu podia ser assim:

“Foi em vão que vi
as cerejeiras em flor

me sentei nas pétalas
e as farejei

jamais encontrarei

a sua autêntica beleza”


Mas o sujeito poético apresenta-se atormentado.
A contrição do poema não é feita à toa, parecendo-me que o processo não foi nada intuitivo.
Poderia, a nível formal, em vez de ser composto por um dístico e por um monóstico, ser feito apenas com um terceto.
Até faria mais sentido, porque a nível imagético o poema está muito perto dum haikai. Esse tipo de poemeto é feito com três versos também, embora obedeça a um esquema de cinco-sete-cinco nas sílabas métricas. Os motivos da natureza, são frequentes em haikais. Contudo, a menor evidência de metáforas nos mesmos também trai esta lógica, que estou a tentar seguir.

O título é como o corpo do poema. Curto e forte.
Começa com o sistema de abstração mais complexo e vital ao ser humano.
Os Homens são construídos por matéria orgânica e um conjunto complexo de teorias e informação, que tentamos à força que seja verdadeiro, e criámos métodos de prova a que chamámos de ciência.
Há que crer.
Se o Homem quiser crer que a Terra é plana, ela vai ser plana.
Se quiser crer em Deus, ele existirá.

Acho que mais do que o Homem, a “...crença...” será imortal. Perene.
Contudo, o adjectivo que acompanha este nome tão feminino e másculo, ao mesmo tempo, é o contrário de perene.
É “...caduca...”.
Tem três sílabas, duas consoantes e duas vogais, sendo que uma repete-se duas vezes. Vem do latim Cadere, que significa cair.
A crença que cai, neste caso, tem um aspecto de fim. Se bem que, neste caso, pode não ser a “...crença...” enquanto conceito, ou no geral, mas uma específica.
Além disso quando penso em caduca a memória leva-me sempre aos professores de ciências da preparatória que nos diziam que as folhas das árvores podem ser desses dois tipos.
As folhas, subentendidas, podem ser símbolo de escrita, ou de material onde se escreve.
Sem grande esforço podemos imaginar a “...crença...” como uma folha que cai. Outonal. As folhas no chão das matas ainda servem para adubar a terra, protegem o solo de intempéries, abrigam formigas. Fazem parte dum ciclo em que, a crença, parece estar envolvida. Ainda que tenha outro papel, a nossa crença antiga ainda faz parte de nós, ou se quisermos, fez.

O título tem esta cara de poucos amigos.

O primeiro verso, tem, contudo, a primavera.
Chegamos à conclusão que não são só as folhas que caem. Acontece o mesmo às flores.

As flores são o aparelho reprodutor da maioria das plantas. Serve a beleza das suas “...pétalas...” para atrair os polinizadores, que têm um papel fulcral para o surgimento de novas cerejeiras. Estive a ver o aspeto das “...cerejeiras em flor...” e tem um arrosado lindíssimo. Leve.

Mas o sujeito poético afirma ver o mesmo que eu vi, numa foto da google. Mas duma forma estranha: “foi em vão...”, o que nos leva a crer (lá está) que havia um objectivo, para as ver, e que não foi cumprido.
Como figuras de estilo mais evidentes, temos a aliteração em FF e VV. Têm um quê de vento.
Tem graça a primeira e a última palavras do verso começarem com a mesma letra.

Depois, percebemos que as flores não estão na árvore.
No segundo verso, o sujeito poético senta-se nelas.
E, das duas uma, ou está a voar e consegue sentar-se nelas na copa da árvore. Ou, mais provável, estão todos no chão.
Há, nesse verso, um verbo que me apela aos sentidos duma maneira quase visceral. Animal. Quando refere que “...as farejei...” parece o uso muito apropriado dum verbo inesperado. E concreto. E minucioso...
Acho que não foi dada a mesma atenção, ou importância, ao outro sentido usado, a visão.

Nestes dois versos, temos alguém em busca. Dalgo duro, ou difícil de encontrar, mesmo no meio da perfusão de cores e de perfumes que tem à sua volta.

Se voltarmos à ideia de haikai, também há cerejeiras no Japão (donde é originário) (já agora, no Fundão também e na terra do meu Pai) e estamos perante esses temas frequentes que já referi, e fico a pensar no que serão coincidências neste poema tão pequeno.

O monóstico surge, e entendemos o porquê de assim ser:

O objectivo do sujeito poético fica revelado.


Digamos que não é tarefa fácil.
Como diz o provérbio “quem feio ama bonito lhe parece” então, o mesmo, passa-se com a beleza, ainda mais, sendo autêntica.
Sendo subtil, ela pode estar em todo lado, podendo mesmo estar à nossa frente, sem a podermos ver.

O autêntico, neste caso, surge em oposição ao falso, ao fingido (tão poético), ao faltar à verdade.
Sendo a verdade também muito subtil e variável no tempo e no local.
É um esforço inglório pelo qual todos temos de passar, tem de ser uma crença.
A de encontrar essa "...beleza...".

A mim, cheira-me a que ela esta mesmo à frente deste sujeito poético, ou está ele sentado em cima dela.
Um poema de desilusão...

Gosto de poemas curtos.
São difíceis.
Não é fácil fazer bons.

Este é.

Obrigado pela leitura.

Abraço



crença caduca


foi em vão que vi as cerejeiras em flor
me sentei nas pétalas e as farejei


jamais encontrarei a sua autêntica beleza


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Criado em: 7/4 3:18
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Re: Comentário a “crença caduca” de AliceMaya p/ Rogério Beça
Super Participativo
Membro desde:
2/2 22:23
Mensagens: 167
Olá, Rogério.

Obrigada, desde já, pelo teu comentário. Sinto-me honrada por teres dedicado tanto tempo a, enfim, coisas de que me lembro e de que gosto.

Não vou comentar o teu comentário, nem responder às questões colocadas. Desculpa.
Acho que deve ser mesmo assim. As dúvidas são para ir ficando, desaparecendo, surgindo, permanecendo e fugindo. Como a vida.

Cito apenas isto:

O título tem esta cara de poucos amigos
achei muita graça, até porque eu própria fico com cara de poucos amigos, algumas vezes.

E digo apenas duas coisas, em jeito de remate:
1. as crenças têm mesmo prazo de validade
2. este é, de facto, um poema de desilusão, como dizes.

Muito obrigada, mais uma vez e parabéns pelo vosso trabalho.

Abraço Maya!

Criado em: 9/4 21:21
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e sou do sítio das borboletas monarcas azuis
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