Comentário a "Sinapse do Desencanto", de Aline Lima
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2/10/2021 14:11
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"Sinapse do Desencanto", de Aline Lima

Do bem e do mal despertaram os meus desencantos.
Na escuridão do mundo vejo fantasmas,
demônios e santos.
Desalento em descrente oração.

Saudade descabida do não ser, do que não foi,
da palavra nunca dita.
É sempre noite no meu coração.

Obscuridade do viver sem vida,
quando quem deveria ficar
deixa-se morrer em despedida,
rostos vazios na multidão.

Existência de rastros
com os olhos rendidos ao chão,
sonhando com os astros,
mediocridade por devoção.

Portas fechadas, entrada somente para raros,
beco sem saída, pensamentos fora do fluxo,
sinapse em desconexão.
Alma se desmanchando por aí perdida,
sem nada de mim, solidão...

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Percurso de leitura nº 21 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

A escolha deste poema deve-se a uma casualidade, como é hábito acontecer e como costumo confidenciar a quem vai lendo estes comentários. O mês em que nos encontramos (Outubro) é marcado todos os anos pela atribuição dos prémios Nobel. Foi isso que me fez lembrar deste texto de Aline Lima que, na altura em que o li pela primeira vez, achei muito interessante. Todavia, o que poderá surpreender é que me lembrei dele não por causa do Nobel da Literatura, mas do da Medicina.

Há precisamente 60 anos, em 1963, o neurofisiologista John Eccles foi laureado com este prémio por ser um dos pioneiros no estudo das sinapses. Elson Montagno, num texto de homenagem a Eccles, explica o fenómeno de uma forma muito acessível:

"A sinapse é uma microscópica fenda altamente especializada da comunicação entre células nervosas, que transmitem impulsos ao longo de suas fibras. Substâncias químicas neurotransmissores deixam a membrana pré-sináptica da célula levando o impulso de energia-informação. […] Por exemplo, ao sair da medula espinhal, o impulso para flexionar o dedo tem que chegar ao nervo que vai até o músculo que, ao se contrair, efetua a flexão do dedo. É a sinapse que conecta a célula nervosa da medula com a célula nervosa do nervo que vai até o dedo. A sinapse é uma dentre a miríade de elementos e estruturas existentes entre a consciência de querer mover o dedo e a memória de como fazê-lo, utilizando bilhões de células nervosas e trilhões de sinapses." (1)

Assim sendo, a sinapse constitui uma metáfora em potência, riquíssima em termos interpretativos. Conjuga em si as ideias de comunicação, de impulso, de espontaneidade, de algo que une o desejo à ação, a imobilidade ao movimento, o presente à memória.

O título do poema associa a sinapse ao desencanto. E o que é o desencanto? Diríamos que se trata de uma especial forma de tristeza, que nasce da expectativa e do sonho quando se transformam em desilusão, concretizada numa sensação de amargura e de perda interior. Assim sendo, o título parece conter uma expressão algo contraditória. Considerando aquilo que se quer e aquilo que se atinge, temos por um lado a fusão proporcionada pela sinapse, por outro a cisão sentida no interior do "eu", dececionado com a perda que sofreu. Tendo esta tensão de ideias em mente, vamos ao encontro do poema para tentar compreendê-la melhor.

A primeira conclusão, numa leitura transversal, é que a metáfora da sinapse é guardada para a parte final do poema. A maior parte do texto será — para usar um termo caro à medicina — uma espécie de "anatomia" do desencanto.

Os "desencantos" aparecem no plural, sinal óbvio de que o desapontamento do sujeito poético é uma experiência que ocorreu várias vezes, é algo que conhece bem. O universo metafórico escolhido na primeira estrofe para retratar este sentimento é o da religião. Aos dilemas do "bem" e do "mal", dos "demônios" e dos "santos", o eu responde com o oxímoro da "descrente oração".

Essa oração é acompanhada pelo "desalento", um sentimento que, muitas vezes, se toma como sinónimo de desencanto, mas que etimologicamente traz-nos uma carga negativa acrescida, de falta de ânimo, de cansaço físico e psicológico: vem do verbo latino "anhelitare", frequentativo de "anhelare", que significava "respirar" (daí vem, por exemplo, a nossa palavra "hálito"). Essa "falta de ar" remete-nos para o risco em que se encontra a sobrevivência física ou interior, emocional e até moral, como veremos mais à frente. Todavia, também pode sugerir as sensações de constrição e de clausura interior, que experimentamos ao longo do poema.

Do desencanto à saudade, na segunda estrofe, vai um passo: sente-se aqui o ambiente malsão da falta de algo que não ocorreu (daí ser "descabida"), de algo que nem sequer pode ser verbalizado. A este propósito, recorro uma segunda vez à etimologia (e será a última para não me tornar ainda mais aborrecido). "Desencanto" nasce pela negação da palavra latina "incantare", que se forma com o prefixo "in-" (a preposição "em" português) justaposta a "cantare", com o sentido de "produzir um discurso atraente" (conhecemos bem esta aceção, por exemplo, no épico de Camões). Com o tempo, passou a designar as ideias de "encantar, seduzir". Assim se percebe, a angústia do sujeito poético, despojado do seu bem mais precioso — a palavra que enfeitiça, que envolve e fascina.

Recordo novamente o que disse relativamente à primeira estrofe: a ideia do desalento como um sentimento que põe em risco a sobrevivência, inclusivamente a moral. Na quarta estrofe, encontro a concretização dessa ideia: a dignidade do eu é completamente destruída pela desilusão, adotando uma "existência de rastros", de rendição no olhar, já que os "astros" estão longe, apenas ao alcance dos sonhos. A expressão "mediocridade por devoção" é a síntese perfeita desse estado de espírito, em que o sujeito poético se abandona num ritual absurdo à mediania, a ser mais um dos "rostos vazios na multidão" (como se diz na terceira estrofe), solitário, submisso, nulo perante a força do destino.

Chegámos à última estrofe e regressamos ao início, à sinapse do título. O intervalo que separa e, ao mesmo tempo, une. O espaço imóvel que permite o movimento. A ligação, sobretudo. Ao chegarmos ao final, a sinapse é negada na sua natureza: temos "portas fechadas", um "beco sem saída", as metáforas apontando o sentido de prisão, de asfixia, de impedimento. A "alma" em "desconexão" desfaz-se lentamente — o gerúndio confere essa ideia de algo em andamento, que não se pode interromper, a que o eu é obrigado a assistir como uma punição que parece não compreender. Repare-se também na expressão adverbial "por aí", que traduz com subtileza a apatia e desistência perante a perda — um pouco à semelhança da terceira estrofe quando, instado pelo dever de "ficar", de evitar um "viver sem vida", escuta-se a resposta mais terrível: "deixa-se morrer", a abdicação completa, a atração pela auto-destruição.

Em suma, estamos perante um retrato elegíaco muito bem feito, construindo um ambiente melancólico delicado e profundo que toca em aspetos que — para muitos de nós que já tiveram de se confrontar com os labirintos do desencanto — são particularmente difíceis emotivamente, mas poeticamente muito vívidos e merecedores de atenção.

(1) https://cerebromente.org.br/n01/elson/elson3.htm

Criado em: 4/10/2023 21:10
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Re: Comentário a "Sinapse do Desencanto", de Aline Lima/benjamim
Administrador
Membro desde:
15/2/2007 12:46
De Porto
Mensagens: 3598
olá

curiosamente, hoje, 05/10/23 será anunciado o Nobel de literatura.

não é por acaso que aprecio , como direi? análises literárias, crónicas, ...não importa. tudo o que traz, ultrapassa a leitura e interpretação que se possa ter de um texto, neste caso, "Sinapse do Desencanto" de Aline.Lima. na altura que li o dito texto, "fiquei encantada"e agora mais "encantada" fiquei. minhas sinapses ficaram " on fire" e é sempre tão bom ver, ler a tua entrega neste espaço.crítico.literário, que não é fácil, que na minha opinião, só um ser num patamar lá em cima consegue fazer com tanta dedicação , generosidade e sabedoria.

orgulhosa de ambos

atenciosamente
HC


Criado em: 5/10/2023 10:43
_________________
" An ye harm none, do what ye will "
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Re: Comentário a "Sinapse do Desencanto", de Aline Lima para Benjamin

Membro desde:
2/4/2012 17:15
De Brasília- Brasil
Mensagens: 597
Olá Benjamin,
Nossa, estou muito feliz com o seu comentário. Quero expressar minha profunda gratidão pelo tempo e pela reflexão que você dedicou ao meu poema.
Suas observações meticulosas e interpretações detalhadas acrescentaram uma dimensão nova e enriquecedora ao meu texto. Fiquei sinceramente surpresa, de maneira bastante positiva, ao ver como você desvendou a minha escrita de uma forma tão profunda, gentil e cuidadosa. A experiência de ter meu texto dissecado e compreendido tão minuciosamente é, sem dúvida, algo desconcertante e reconfortante ao mesmo tempo.
Perceber que você mergulhou nas entrelinhas e descobriu camadas de significado que talvez nem mesmo eu tinha percebido durante a escrita foi uma experiência incrível. Suas reflexões sobre a relação entre a sinapse e o desencanto, bem como a exploração das diferentes estrofes e seu impacto emocional, são verdadeiramente impressionantes.
Estou genuinamente emocionada e tocada com a sua interpretação. Recebo a sua análise neste espaço como um grande estímulo e fonte de inspiração.
Mais uma vez, obrigada por sua dedicação em desvendar as nuances da minha escrita.
Suas palavras são um presente para mim.
Com imensa gratidão e carinho, Aline.

Criado em: 5/10/2023 17:43
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Re: Comentário a "Sinapse do Desencanto", de Aline Lima para HC

Membro desde:
2/4/2012 17:15
De Brasília- Brasil
Mensagens: 597
Querida amiga HorrorisCausa,

Que alegria receber suas palavras carinhosas! É sempre um prazer compartilhar análises literárias, crônicas e tudo mais com você. Embora você seja suspeita, suas palavras de apoio e incentivo são uma alegria para a alma. Fico imensamente feliz por saber que suas sinapses ficaram onfire e que o desencanto a encantou novamente.
Estou muito lisonjeada e realizada por compartilhar este espaço e essa paixão pela poesia contigo, com o Benjamin e outros ilustres poetas. Que possamos continuar explorando juntos as maravilhas da literatura.

Beijos,
Aline.

Criado em: 5/10/2023 19:54
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